ANDRÉ FERNANDES

Pausa para o café

13/11/2013 às 05:00.
Atualizado em 26/04/2022 às 12:32

No último dia 9/11, nós, os cento e doze juízes do 170º concurso de ingresso à magistratura do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, comemoramos 15 anos de carreira, incluso os dois grandes amigos que tiveram suas vidas ceifadas precocemente, numa espécie de supremo roubo divino. Cada um foi construindo sua carreira de maneira irrepetível e singular e, todos, ao mesmo tempo, delinearam um perfil de judicatura nem melhor ou pior que os juízes que nos antecederam ou nos seguiram.Mas diferentes: somos conscientes de nossa crescente responsabilidade (accountability seria a expressão mais apropriada) para "os destinos da cidade", como diziam os gregos, e protagonizamos posturas institucionais impensáveis há dez ou vinte anos, sempre no afã de construir o justo concreto na complexa realidade social. Evidente que novas críticas surgiram e muitas delas foram tomadas por nós como uma forma de aprimoramento profissional. Não foi fácil. Continua não sendo. Diariamente, precisamos nos reinventar para que a acomodação e o conformismo não minem nossas forças.Como, para o ensino jurídico, a justiça tornou-se uma categoria “irrelevante” para o Direito, o importante para o profissional do Direito, nos dias de hoje, é o de simplesmente assegurar para o sistema jurídico a certeza e a segurança da juridicidade posta pelo legislador, a fim de evitar uma indevida intrusão de qualquer normatividade extrapositiva. E o método científico, nessa lógica, seria o melhor caminho para aplicação do Direito: o Direito, então, “tornou-se” ciência e “deixou de ser” prudência, no sentido mais genuíno, dado e vivido pelos jurisprudentes romanos.Esse quadro é preocupante, porque nos precipita para a condição de “funcionários” do sistema: responsáveis tão somente em fazer com que o tal sistema “funcione”. Isso rebaixa nossa condição profissional, porque nos torna herméticos a pensar o Direito, fato que, diariamente, incomoda-me: como ter tempo para isso, se meu tempo é consumido quase que totalmente para me preocupar com os mais de cinco mil feitos em andamento?O Direito é matéria que se aquilata em realidades muito concretas e, hoje, continua a levantar outros profundos problemas no campo filosófico que, indiretamente, refletem na correria forense dos despachos, sentenças e audiências. Mas todo avanço desse saber bimilenar pressupõe uma determinada concepção de homem, de justiça e de ética, com os efeitos daí decorrentes na dimensão jurídica: uma espécie de jogo de espelhos.Usá-los é, como assinala Borges, perpetuar os males e os homens, multiplicando-os. A outra alternativa é não usá-los, ou seja, é não se conhecer, contrariando o velho imperativo filosófico primeiro: conhece-te a ti mesmo. E, assim o fazendo, o Direito fica sem responder, ao mesmo tempo, a outro velho interrogativo filosófico primeiro: como viver?É um dilema cuja resposta é fácil e difícil. Fácil, porque, como uma realidade do mundo do espírito, o Direito é um ser que depende sempre de um elemento axiológico que o sustente e, como realidade dotada de politicidade, o Direito deve enveredar pelo caminho da antropologia filosófica e da ética social. Então, a resposta é afirmativa: devemos usar o jogo de espelhos, a fim de que o Direito conheça a si mesmo e paute o seu próprio viver.Ao usar os espelhos, adentramos na parte difícil da resposta e na órbita dos riscos narrados pelo poeta argentino, aliás, riscos inerentes à nossa própria condição existencial, cujos espelhos não fazem mais do que refleti-los e confundi-los em forma de caleidoscópio. Apesar disso, acreditamos que a iniquidade profetizada pelo mesmo poeta pode ser substancialmente diminuída se o reflexo desse jogo de espelhos — o Direito — for capaz de, em sua multidimensionalidade, transmitir a imagem do justo concreto determinado prudencialmente.E, assim, concomitantemente, o Direito passa a refletir a imagem de sua realidade ricamente prudencial, abre-se, hermeneuticamente, à experiência pedagógica de sua verdadeira ontologia, ilumina a natural politicidade do indivíduo e o conduz para o bem comum e para uma juridicidade fundada no respeito à dignidade da pessoa humana e no império do justo concreto.Porque o Direito sempre foi tributário da fé secular humana no lento labor de construção das realidades temporais da civilização, a qual ele mesmo acabou por engendrar numa tradição multissecular de incalculável transcendência social. Por isso, amo minha profissão e, hoje, sem espaço para a divergência, é o que penso. E zelo por ser consequente.

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