Nossa terra: cercada por cem jabuticabeiras, Susanna Ulson, do Restaurante da Capela, em Joaquim Egídio, explora as infinitas possibilidades gastronômicas da fruta
Volta e meia, Carlo Petrini, Alice Waters, Alex Atala, Laurent Suaudeau, Celso Freire, Mônica Rangel e uma leva de cozinheiros conscientes põem-se a recitar os preceitos da gastronomia sustentável. Não que o bê-a-bá do slow food não tenha se disseminado do país da bota para o mundo; ou que a noção de que o que brota localmente deve ser colocado no prato a fim de que se mantenha a cadeia produtiva, pro-du-ti-va. Ao avesso. Ocorre que, para que uma ideia vingue, há que se persistir nela, ainda que na contramão da burocracia e em terras de dimensões continentais. Ora, tem chef que faz isso por brio e instinto – aí pelo acaso (ou sorte) do contato com a terra e respeito ao produto – e leva mais gente consigo na andança. Susanna Ulson, do Restaurante da Capela (Joaquim Egídio), por exemplo, embaixadora da jabuticaba a rigor (é agrônoma, do tipo que pesquisa um bocado) e a caráter (de dólmã e barriga no fogão). “Criar algo inédito tendo a possibilidade de acompanhar desde o processo de plantio até a execução do prato é fantástico, principalmente em se tratando de um ingrediente tão nosso quanto a jabuticaba”, avalia.
Ela vem investigando a fruta desde que se conhece por gente (ou quase isso), mas pôs afinco nessa lida a partir de 2003, quando passou a administrar a Fazenda Santa Maria, propriedade da família onde cem jabuticabeiras florescem no tempo certo. No delas, ora, de forma orgânica e 100% sustentável. Com tanta fruta à disposição, o jeito foi criar uma linha de produtos que hoje atende por Maria Preta, marca registrada, e tem licores e geleias como carros-chefes, servis a pratos (caso do Medalhão Maria Preta, bandeira do restô), sobremesas (cheesecake e creme de papaya) e drinques (batida, tônica etc).
Três semanas atrás, numa noite insone, a chef foi para a cozinha materializar mais um eureka!: uma massa à base de polpa e casca de jabuticaba. Aperfeiçoou a receita e concluiu: a jabutipasta (nome sacramentado) pode se tornar novo produto ícone, do caldeirão multicultural brasileiro. Fresca ou seca, a massa, cujo sabor resulta peculiar graças ao azedinho da fruta, percebido no retrogosto, já está em fase de produção. O canelone com recheio de carne de cordeiro, toque de hortelã e molho bechamel e nozes, aliás, integra o menu especial da quinta edição do Festival Gastronômico de Campinas, cujo tema é Sabores do Mundo.
“E o que é o Brasil se não um pool de países, da rica fauna e flora à população? A jabuticaba ocorre noutros países, mas é genuinamente nacional. De certa maneira, a jabutipasta representa as nossas tantas misturas”, pontua a chef, descendente de dinamarqueses, italianos, suecos e ingleses, embora nascida no seio tupiniquim. “Sou pura de origem importada, mas genuinamente brasileira. E é nossa bandeira que sempre vou defender ao longo de minha trajetória.”
Foto: Érica Dezonne/AAN Batida Maria Preta e Tônica Maria Preta: drinques exclusivos feitos com a mais brasileira das frutas
Blend Maria Preta
Pois o blend de jabuticaba que Susanna desenvolveu deriva das três espécies que brotam na fazenda: paulista ou açú (maior do que as outras e de maturação tardia), ponhema (mais azeda, ideal para geleias e licores) e sabará (a mais comum e mais doce, de maturação rápida). “Faço análises anuais do licor (a produção hoje está em 5 mil litros/safra) para abalizar as características organolépticas”, diz ela, endossada cientificamente por pesquisadores da Faculdade de Engenharia de Alimentos da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) que anda palmilhando a Fazenda Santa Maria. Os professores Maria Angela de Almeida Meireles e Ricardo Cavalcanti são dois dos bambas a investigar as propriedades antioxidantes da casca da fruta, rica em antocianina e que pode prevenir dois tipos de câncer, o de próstata e a leucemia.
“Como não contribuir às pesquisas? Além disso, tenho orgulho em dizer que o meu produto é o único da região de Joaquim Egídio aprovado pelo Ministério da Agricultura. Estamos numa área de proteção ambiental, há uma série de regras a serem observadas junto à Prefeitura e à Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (Cetesb), diversos empecilhos burocráticos a serem vencidos”, pondera.
Daí concluir que a união dos cozinheiros, que não só “podem, mas devem valorizar os produtores locais”, pode resultar numa nova ordem gastronômica regional. “A parceria entre cozinheiros deve substituir a competição acirrada. A gente cresce quando compartilha. A Viviane de Moraes (do Estação Marupiara), por exemplo, que defende a cozinha brasileira de forma sustentável, foi uma das primeiras a testar e empregar meus produtos, por isso a considero parceira. Na Associação dos Dirigentes de Estabelecimentos de Gastronomia de Sousas e Joaquim Egídio (Adegas) temos discutido muito essa necessidade de pensar mais coletivamente, regionalmente.”
Foto: Érica Dezonne/AAN Canelone de jabutipasta e Fettuccine: jabuticaba é ingrediente nobre de vários pratos do Restaurante da Capela, em Joaquim Egídio
A remo e avante
Criada no campo, filha de uma cozinheira à la Babette (à altura da personagem do longa-metragem clássico), Susanna sempre teve certeza de que transitaria por essas duas bandas. “Mas ninguém botava fé que viraria chef”, diverte-se. Na memória persiste a lembrança do dia em que descobriu um lugar mágico onde raios de sol batiam nas pedras por entre os galhos de dezenas de jabuticabeiras. “Meu pai queria se mudar para a Fazenda Santa Maria, pediu o aval dos filhos. O meu, obviamente, foi dado quando vi aquela cena.”
Cursou agronomia na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) em Piracicaba, especializou-se em agricultura orgânica pela Unicamp e quando voltou para a fazenda, já restaurada, teve certeza de duas coisas: 1) Deveria investir no turismo rural e assim dar notoriedade ao patrimônio histórico em que vivia. E então desenvolveu projetos de educação ambiental. 2) Tinha de aproveitar todas as jabuticabas. “Recuperei a receita de licor de uma tia, aprimorei-a, arrumei um tonel de inox de mais de mil litros e, com um remo, fui mexendo meu caldo”, conta, entre risos.
Depois de muitos testes e investimento em tecnologia, o licor orgânico resultou tão bom que italianos, japoneses e ingleses já importaram a bebida. Hoje, aliás, estrangeiros aderem mais ao esquema “pague e colha” implementado na Fazenda Santa Maria do que campineiros/brasileiros.
Com o tempo, Susanna começou a fazer geleias e pratos rápidos para alimentar os visitantes e os próprios sonhos. Passou a coordenar eventos e, acatando a sugestão do marido, “ousadamente”, estruturou um menu autêntico (internacional, mas de acentos brasucas) e abriu o Restaurante da Capela, que acaba de completar seis anos. Nos dois últimos, a casa está em novo endereço, o do antigo Cambuquira.