Parente do pai da psicanálise e viúva do psiquiatra Maurício Knobel, psicóloga fala da vida dedicada a entender a alma humana
No arejado apartamento no Cambuí há dois quadros do artista plástico Bernardo Caro: o do escritório destaca como elemento principal os sobrenomes Freud Knobel e o da sala de jantar, apenas o Knobel. Quem seriam os homenageados? Clara Freud Knobel, dona da primeira obra, tem parentesco com Sigmund Freud, o pai da psicanálise, e é viúva do psiquiatra Maurício Knobel – o segundo homenageado por Caro –, que se transferiu para o Brasil em 1976 para reorganizar o Departamento de Psiquiatria da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Os dois ficaram casados até a morte de Maurício, em 2008. Foram 55 anos de união.
Nascida em Buenos Aires, em 1934, Clara é mãe de Hernando, médico em Barcelona, na Espanha; Joseph, psicólogo, nascido em Kansas City, no Estado de Missouri (Estados Unidos), durante residência de Maurício, de 1956 a 1958; Marcelo, físico, pró-reitor de graduação da Unicamp, e Roxana, médica ginecologista e obstetra que mora em Florianópolis. Além deles, três sobrinhos de Maurício também são considerados filhos do casal, como Clara conta nesta entrevista concedida numa tarde de terça-feira, regada a refrigerante zero e a uma emoção perceptível em seus olhos claros.
Irmã de Hector, arquiteto que vive em Buenos Aires, Clara também teve uma irmã, Esther, que já morreu. Raramente cruza com alguém da família Freud, como aconteceu em julho do ano passado, ao encontrar-se com uma prima que tem uma livraria no badalado bairro Palermo, na capital argentina. Há muitos anos, ao visitar a Europa com o marido, passou por Israel e tentou uma aproximação com Anna Freud, filha do psicanalista, mas não deu certo.
Provavelmente a parenta estranhou o vínculo familiar e não riscou compromissos na agenda para conhecer o casal. Uma pena, pois perdeu uma boa oportunidade de saber um pouquinho da história de vida deles, semelhante a roteiro de filme para assistir domingo à tarde em cinema alternativo.
Metrópole – A senhora tem Freud no sobrenome. Qual o grau de parentesco com o pai da psicanálise?
Clara Freud Knobel – Meu pai, Samuel, era primo de Jacob Freud, pai de Sigmund Freud, sendo ele filho do terceiro casamento. Meu pai conheceu Freud quando ele tinha 8 anos. Depois, nunca mais o viu.
Sua família então não teve mais contato com os Freud?
Não, uma vez que meu pai e um primo dele queriam conhecer a América e a minha avó paterna deu US$ 100 para eles viajarem. Os dois pegaram um navio e desembarcaram em Buenos Aires, não em Nova York como planejado. Lá, foram trabalhar inicialmente numa loja de peles, até que meu pai conheceu minha mãe, Eugênia, chamada por todos de Gênia. Ele era austríaco e ela, polonesa. Minha mãe e sua família migraram, mas a do meu pai ficou na Áustria, e isso o entristecia. Ele perdeu o vínculo com seus familiares durante a Segunda Guerra Mundial.
Mas a psicanálise e a senhora sempre mantiveram certa proximidade. Como conheceu seu marido?
Durante uma palestra, em Buenos Aires. Eu era normalista e a maioria da plateia daquele dia era formada por mulheres, cerca de 600 pessoas. Depois da apresentação, no elevador da Faculdade de Medicina, eu e umas amigas encontramos o Maurício e eu o parabenizei não só pelo conteúdo da apresentação, mas pelos aplausos e pela emoção das alunas em ouvir tantas coisas importantes no final do curso. Estávamos concluindo a Escola Normal. Eu tinha 18 anos e ele, 30.
Trocaram telefones?
Na verdade, eu ainda tinha que pegar um ônibus para chegar em casa. A vida era dura, não é como hoje. O doutor Maurício – era assim que eu o chamava naquela época – me disse que pegaria uma condução para visitar três sobrinhos que tinham ficado órfãos de mãe há uma semana. A cunhada dele morrera de câncer e as crianças ainda eram muito pequenas; uma delas tinha apenas 3 meses. Demoramos uns sete meses para começar a namorar. Depois nos casamos e tivemos quatro filhos, mas eu costumo dizer que são sete. Até hoje mantenho contato com os sobrinhos dele: Horácio, que é advogado, e Suzana, empresária, já com 70 anos, e muito querida. Jorge, que morreu há três anos, era psicólogo.
E como foi que a psicologia entrou na sua vida?
Foi mais tarde. Primeiro tivemos dois filhos e só em 1963, ainda em Buenos Aires, é que cursei a faculdade. Em 1976, no Brasil, fiquei um ano e meio sem trabalhar, dedicada às crianças. Depois de um intervalo de dez anos, eu e meu marido decidimos ter mais dois filhos, pois queríamos uma família grande. Em 1978, comecei a dar aulas na Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas) e, em 1986, o médico José Aristodemo Pinotti me convidou para ser psicóloga do Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher (Caism), na Unicamp, onde trabalhei por 21 anos, até me aposentar.
Mas a senhora se aposentou de vez ou continuou trabalhando?
Ainda atuo às segundas, quartas e sextas-feiras em consultório no Cambuí. Já não atendo crianças e adolescentes por estar mais distante desse universo, mas ouço pais, casais e mulheres em tratamento contra o câncer. Também oriento quem atendi há 20 anos, como um paciente que tem filhos na adolescência e está preocupado com os limites, coisa comum atualmente.
No Caism, a senhora atendeu muitas pacientes com câncer numa época em que a doença era bastante estigmatizada. Como foi esse trabalho?
Outro dia assisti ao filme 'O Amor É Tudo o que Você Precisa', que me fez lembrar disso. Conta as histórias de um viúvo que passou a viver sozinho depois de perder a esposa num acidente e de uma cabeleireira que, ao concluir seu tratamento de quimioterapia contra um câncer de mama, flagra seu marido com outra mulher. Os dois se conhecem na cerimônia de casamento de seus filhos, na Itália, e iniciam um romance. Na vida real também é assim: muitas mulheres descobrem a traição dos maridos ou são abandonadas quando ficam doentes.
A senhora separava bem as coisas ou sofria ao ver mulheres enfrentando a doença?
Sofri muito ao ver pacientes jovens com a vida emocional devastada e tive que fazer análise para me manter firme. Nunca levei problemas para discutir em casa com meu marido. Separava
bem as coisas. Creio que também por isso meu casamento durou 55 anos.
A viuvez a levou a viver só?
Gosto de ser independente. Tenho muitos parentes em Buenos Aires, dois filhos que moram aqui e suas famílias, outros dois que vivem fora. As saudades eu amenizo com os recursos tecnológicos atuais. Ainda gosto muito de ler livros, de pegar no papel, e a tecnologia me ajuda mesmo no sentido de aproximar quem está longe. Em Campinas, sinto falta de mais espaços culturais. Em Buenos Aires temos muitos.
A psicologia e a psiquiatria já sofrem menos preconceito hoje?
Sim, mas em Buenos Aires é mais comum fazer análise. Você pergunta a uma pessoa, por exemplo, o que ela faz, qual a sua profissão e o nome do seu analista. No Brasil isso já não acontece. Muita gente esconde que faz análise.
Fazer terapia foi importante em que momentos de sua vida?
A crise dos 50 me fez reavaliar muita coisa, mas bem antes disso, quando deixei meu país, também foi importante. Não é fácil mudar de pátria, ainda mais naquela época, quando se demorava horas para fazer um simples telefonema.
Tem vontade de retornar para a sua pátria?
Gosto daqui, não penso em voltar. Sempre que posso visito as pessoas queridas. Criei vínculos afetivos com o Brasil.
O que achou da escolha de um argentino para exercer a função de papa? Já o conhecia?
Não o conhecia, mas espero que seja o melhor para a instituição e seus seguidores.