Os pingos das chuvas não caem só do céu, sim também das folhas e dos galhos da floresta que me cerca nesta ilha de onde ora escrevo. É tempo de Inverno na Amazônia, quando as águas descem durante dias seguidos. Há certa sistematização nisso, é preciso que se diga. De repente o pampeiro vem enorme, quase diria com fúria, o vento forte transformando em pó a grande barreira d’água; aos poucos, porém, faz-se calma, restando apenas um chuvisco que às vezes dá a impressão de ser eterno, mas só até que nova tempestade desabe; para se seguir a outros chuviscos, outros temporais, durante dias, semanas, meses, com a umidade do ar crescendo tanto que não é exagero dizer que se respira água.Mas os pingos não vêm só do céu. Descem também dos galhos e folhas, entranham-se e escorrem entre os limos e musgos dos troncos das árvores seculares. No chão formam sulcos que levam, para o âmago, para o coração do solo, o húmus indispensável às sístoles e diástoles do pulsar da terra que alimenta a floresta aqui íntegra, intocável. Certamente a mesma que o navegador espanhol Vicente Yáñes Pinzon deve ter visto ao passear com suas caravelas pelo delta do Rio Amazonas em janeiro de 1500, três meses antes da chegada de Cabral à Bahia.Nos longos espaços em que a natureza verde se entrega integralmente aos chuviscos, é que nascem as calmarias, marca registrada dos dias de Inverno. Nada se move em terra, nenhum passarinho canta, poucas gaivotas voam, e a superfície da baía enorme que empurra as águas doces para o Atlântico, vira imenso espelho. Fendido apenas, aqui e ali, pelo bufar de botos que vêm à superfície para respirar. E enquanto o tempo escorre e percebe-se o mover das nuvens no horizonte, advinha-se logo que nova tromba d’água se prepara; os insetos, as formigas, que sabem tudo, movimentam-se com mais agilidade para que não sejam levadas pela correnteza que escorrerá no chão tomado pelos galhos secos e folhas que tombam. José Maria Leal Paes, também jornalista, um dos maiores poetas do Brasil de hoje, fotografou isso num dos seus lindos poemas, ao constatar: “Janeiro, caso sabido das chuvas/ As formiguinhas se aconchegam/ Nas cores das flores”...E aí, nas flores, é que captamos o único sinal de claridade no tempo. Pois apesar das chuvaradas intermináveis, ou talvez por causa delas, as roseiras, em vermelho, branco, cor de chá ou amarelo, oferecem à sacralidade dos orvalhos talvez seus exemplares mais exuberantes. Um dos quais, rubro, gritantemente rubro, eu observava ainda há pouco no jardim que fica sob minha janela; enternecido por perceber, sobre as pétalas enormes, o escorrer do chuvisco, oferenda ao tempo e ao céu da explosão de vida gritando às circunstâncias do silêncio.Nas noites de horizontes de Inverno, naturalmente, não há estrelas. Mas a lua, na metódica vivência de mudanças de fases segue, impávida, seu destino bem acima, muito acima das nuvens. E quando, afinal, a cheia se formula, sempre ocorre espécie de trégua entre a rota do tempo fechado e as ânsias da luz. Milagrosamente os “cumulus” se dissipam, e o velho luar reaparece, ostentando particularidade que o Inverno a ele concede: chega total e irremediavelmente perfumado. Pelo aroma dos jasmins bogari que explodem nas noites úmidas; além de outros odores que a floresta contém, exalados de folhas e frutos.O cupuaçu, que sazona nos tempos molhados, espalha seu perfume com leve constância de carícia. E a priprioca, que tem cheiro de colo de mulher bonita, parece subir nos raios de luar que se derramam entre os galhos dos bacurizeiros. Cujos frutos, pendentes a mais de 30 metros, são pinturas, em redondo de amarelo forte, de dourado trigal balançando aos ventos.Por fim, é preciso dizer que nas noites de Inverno é que o tamborilar da chuva no telhado chama ao aconchegante apaziguamento das horas. E a cascata de água, a descer do beiral da choupana, bate no solo como a percussão de metódica cadência numa composição de sons que preparam o amadurecer da aurora.Para que se tenha real síntese do que sejam estas águas de março que têm inspirado tanta gente, vale novamente recorrer ao poeta Leal Paes, a nos ensinar que “No Inverno do Pará, / As cores fogem do alto/ E vêm para o alcance das mãos”...