ANDRÉ FERNANDES

Os demônios de hoje

23/10/2013 às 05:00.
Atualizado em 26/04/2022 às 06:30
andré fernandes ( Cedoc/RAC)

andré fernandes ( Cedoc/RAC)

Ao assistir à entrevista com um dos membros do movimento “Black Blocs” que, na essência do modo de agir, não difere nada de um bando de ladrões, ouvi, no meio de uma argumentação bem esclarecida, que o “grupo não pratica violência, mas manifestações estéticas contra o Estado”. A julgar pelos danos causados a terceiros e ao patrimônio público, isso lembra mais a manifestação estética de uma criança birrenta que começa arremessar seus brinquedos na direção do pai, quando este lhe diz que está na hora de dormir...Não vou debater as causas dos movimentos populares que tomaram corpo nas ruas nos últimos meses, mas uma das causas do fenômeno desse grupo de jovens infantilizados: o crescente niilismo no pensamento ocidental. Sob um ângulo existencial, o niilismo concreta-se numa crise de sentido, porque muitos homens ignoram o significado último da vida humana e colocam no poder, no trabalho, nas drogas, no dinheiro e no sexo toda sua vontade e afetividade.Na perspectiva teórica, o niilismo propõe que a única verdade é que não existem verdades, porque adota um ceticismo radical do homem diante da possibilidade do conhecimento verdadeiro, uma espécie de próxima parada filosófica do trem niilista de Nietzsche, continuamente propulsionado pela “falta da resposta ao porquê” das coisas.A perspectiva teórica é o núcleo mais profundo do niilismo e serviu como paradigma da pós-modernidade, cunhado por Lyotard em 1979 para designar os distintos processos de ruptura com o modelo clássico ou mesmo moderno. Tome-se a arte como exemplo: começou com o pinico do Duchamps e, recentemente, fizeram uma exposição em Paris sobre a “estética dos orifícios anais”. Aliás, hoje, visitar grande parte dos nossos museus é tropeçar continuamente nessas verdadeiras pornopopeias, supostamente portadoras de uma expressão artística reprimida...Se a verdade não existe, então, temos que nos virar com as interpretações de textos, símbolos e sinais determinados pelo contexto histórico, como no caso da arte, que deixou a sublimação do artista para se resumir à sua estrita expressão, fazendo retroceder a sensibilidade de nossos artífices ao padrão “neandertal” de humanidade.Para o niilismo, qualquer tentativa de busca de uma explicação global das coisas é qualificada como arrogante e inútil, sendo substituída pela multiplicidade de interpretações que, ao fim, provoca a dissolução da própria ideia de realidade. Já houve quem dissesse que o homem pós-moderno é um homem “pós-humano”, uma expressão que bem representa como uma realidade tão objetiva como o homem pode ser precipitada para o abismo da ausência de sentido existencial, justamente a primeira perspectiva citada.Essa postura intelectual de aversão à verdade permeia as atitudes do indivíduo e produz implicações políticas, sociais e éticas naturalmente. Então, surge um “Black Bloc” e diz fazer uma “manifestação estética contra o Estado”. De estético, nem se aproveita a inteligência de quem afirma isso, porque a violência pela violência lembra muito mais “um local deserto e vazio com as trevas à beira do abismo”, na aguda percepção poética de T. S. Eliot sobre o desespero nobre e solene do niilismo.E a violência é produzida contra o Estado, o maior dos intentos racionalizadores do pensamento humano, visto como um projeto acabado e fracassado, mas que, em nossa ótica, apesar dos desvios históricos, continua sendo o centro de referência a partir do qual se organiza vitalmente uma sociedade.É impossível assistir a esse vil espetáculo dos “Black Blocs” e não se recordar de "Os Demônios" de Dostoievski: nessa obra, o autor já alertava os homens de bem sobre o enorme perigo de se transformar ideias niilistas em formosos ideais utópicos e o preço que se paga socialmente por isso.Entretanto, serve antes como um aviso para aqueles que mascaram uma cabeça oca no afã de mudar o mundo e, ao fim, acabam transformando-se nos supostos “demônios” que, a princípio, pretendiam combater e destruir. Em prol de um nada, que ainda não conseguiram explicar. E não conseguirão, porque, do nada, nada surge. A estrada desse movimento, como canta o bom e velho Ozzy, é uma “estrada para lugar nenhum”. Com respeito à divergência, é o que penso.

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