Recentemente, estive numa instituição de ensino superior para a realização de um debate sobre o ensino jurídico e seus fins. O debate, em si mesmo, oscilou, na temperatura, entre a solar e a infernal. Mas o que me chamou a atenção foi uma preciosidade que chegou, informalmente, às minhas mãos, antes do debate (ou melhor, do combate): uma espécie de manual de boas maneiras visando a uma boa integração dos alunos ingressantes bolsistas na comunidade acadêmica.Esses alunos, provenientes de famílias de baixa renda, certamente mereceram uma oportunidade dessa envergadura, porque, pelos critérios daquela instituição, suaram para chegar lá. O que não quer dizer que os veteranos, digamos, burgueses, merecessem concordar com tudo aquilo que os ingressantes, digamos, proletários, fizessem ou dissessem. De coisas sérias a asneiras. Mas o tal manual pensava diferente.Informava aos veteranos burgueses que os ingressantes proletários não se sentiam confortáveis num ambiente que prezava a intelectualidade e que, por isso, exortava-os, a fim de criar um ambiente acadêmico cordial, a não criticar nenhuma afirmação dos calouros proletários. Dito de outra forma, para o tal guia, tais alunos deveriam ser tidos como uma espécie zoológica digna de ser tutelada num habitat adequado. Leia-se: num habitat politicamente correto.Na mesma semana desse episódio, fomos contemplados com outro, a nomeação do mais novo ministro do Supremo Tribunal Federal, advogado com larga experiência no foro, professor dedicado (segundo meu irmão, ex-aluno dele) e pensador dotado de notável saber jurídico. Corrijo: notável saber jurídico politicamente correto. Em seu currículo, engajou-se na pauta progressista, atuando na defesa da pesquisa com células-tronco embrionárias, da união estável de homossexuais e do aborto anencefálico. Mais liberal que isso, só o próprio Obama.O problema do pensamento pautado pelo politicamente correto é que ele não tem nada de correto e, no afã de evitar qualquer ofensa a este grupo ou àquela minoria, deixa de ser uma mãe para converter-se numa madrasta para o mesmo grupo ou minoria.Veja-se o caso dos alunos proletários. O tal pensamento defende, implicitamente, que tais “seres” murcham em ambientes eruditos. Seria capaz de arrolar aqui inúmeros intelectuais, como Machado de Assis, Miguel Reale e meu orientador, que vieram do proletariado e marcaram o pensamento brasileiro. Mas, para o tal guia, os alunos proletários gostam mesmo de chafurdar no batidão do funk, porque livros lhes dão insônia. Assim, perpetua-se o estigma, ao invés de superá-lo.O mesmo se dá no caso do ministro: na sabatina, ao ser questionado sobre o aborto, disse que aguardava por um debate público “sem preconceitos”. Quem diz que o debate sobre aborto deve ser feito “sem preconceitos”, é um defensor do aborto e, ao mesmo tempo, um detrator da decência dialógica, porque se vale de um argumento que desqualifica o adversário e não sua ideia, ao considerar que só se pode pensar diferente “por preconceito”. Nesse debate, ao mudar o frame para o politicamente correto, o ministro fugiu da questão central (inviolabilidade da vida x autonomia da mulher) e mostrou a verdadeira face do ideário politicamente correto.Esses episódios deveriam ensinar algumas lições aos defensores do pensamento politicamente correto. Em primeiro lugar, tais fatos demonstram um certo totalitarismo representativo, pois falam em nome de coletividades inteiras como se elas fossem homogêneas. Nem todo aluno proletário prefere a fuligem da fábrica ao livro de Camões. Nem toda mulher grávida “indesejadamente” quer abortar. Porque todo indivíduo tem uma concepção “narrativa” de vida: o que existe são indivíduos diversos com histórias e interesses localizados. Em segundo lugar, respeitar as pessoas não significa tratá-las como crianças para quem sorrimos sempre que eles tentam vestir as cuecas pela cabeça.Para um manual de calouro, é suficiente apresentar a instituição e a forma de seu funcionamento. Para um candidato ao posto de ministro da Suprema Corte, basta responder à sabatina com honestidade intelectual. Do contrário, o politicamente correto assume, respectivamente, as formas de academicamente correto e de supremamente correto. Com respeito à divergência, é o que penso.