ZEZA AMARAL

Oração de amor

Olhe a amada adormecida e verá o quanto é vulnerável o sono dos homens

Zeza Amaral
02/10/2016 às 05:00.
Atualizado em 22/04/2022 às 22:09

Olhe a amada adormecida e verá o quanto é vulnerável o sono dos homens. Veja que tamanha beleza são os cílios dela, caídos em tantos sonhos, em bons e sonhos profundos. Nada mais sublime é o gesto da mulher amada, quando adormecida, tão leve e inofensiva, tão forte pela saudade que provoca, se abraça a si mesmo, se enrolando em seu próprio corpo, ele, sim, o seu único e bom companheiro. Bem-aventurado é o homem que acorda no meio da madrugada e volta a adormecer ouvindo o sussurrar da mulher amada, tão etérea, tão bela, um quase entardecer dentro do quarto. E que seja bem-aventurado o homem que chega do trabalho e ainda carrega um forte abraço para aninhar a companheiras, a lhe dar conforto da alma, da fidelidade e companheirismo além dos nervos, ossos e carnes. Bem-aventurado o homem que apenas tem seus olhos interiores para o corpo da mulher amada, que se despe em gestos angelicais, vestida apenas de ar, quase invisível às dores dos homens, bailando a pele nua na penumbra do quarto, quase um vento que nos alimenta as rimas e os maranhões das nossas palavras. Qualquer palavra que ela diz mais parece uma fala de cílios e penugens; o falar dela com os olhos preenchem o mais intensos vazios da alma, das palavras, das rimas, das esperanças que os homens perdem quando adormecem pesados, cansados de tanto amor, carinho e alvoreceres. Tão bela é a mulher amada, quando acordada, que provoca ruídos pela casa, batendo suas asas invisíveis nas portas e tampas de panela, fazendo o nascer de um chá, de um pão se esquentando; e mais bela e amada a mulher se torna quando canta canções aprendidas e guardadas na memória de sua infância, apenas se deixando dançar em canções que só ela escuta e dança. Dormindo, a mulher amada revela aos olhos do seu homem suas inteiras verdades, o brilho das penugens do rosto, a floresta intransponível de seus pelos, muito além das carnes; e quantos mistérios guardam a mulher amada em si, no seu adormecer, nas suas dores e prazeres de mulher, na sua ancestralidade de ser mulher e deusa, senhora de si e de todos os homens. E quão inexplicável são os aromas da mulher amada; sãos transcendentes olores que brotam em minas de incenso, vazando de seus poros e perfumando o hálito do quarto, perfumada que é a mulher amada quando adormece. Bem-aventurado seja o homem insone, pois é acordado por tanto amor que lhe inquieta a alma, ao futuro e ao infinito de seu tempo; e por isso apenas observa a mulher amada adormecer, sabendo que tudo isso um dia cessará - e assim quase não dorme, apenas observa o imenso prazer de estar ao lado de tão magnífica mulher, à qual ora para que tenha sonhos tão leves como as sombras de um salgueiro-chorão, embalada em rumores de águas caipiras, ou em brisa de primavera. E mais bem-aventurado seja o homem que adormece ao lado da sua companheira que, também, honra-o com o seu sono natural, duas saudades em si, se aquecendo na mesma cama. Magnífica natureza que faz a mulher amada adormecer e ficar tão e completamente a mercê dos olhos de quem a observa e ama. Mas a natureza me é ingrata, me envolve em sono enquanto tenho tanto desejo de ficar acordado, à vigília dos sonhos da mulher que me ama e, por si, assim, também amada. Quanto horror, meu Deus, há no vácuo do sono de um homem que adormece ao lado da mulher amada... Bom dia.

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