Cena do filme Ensaio sobre a Cegueira, baseado na obra de José Saramago (Divulgação)
Ao escrever o épico "Ensaio sobre a cegueira" (1995), o escritor português José Saramago deixou para a posteridade um livro de autorreflexão, autoconsciência e um olhar de si. A obra descortina o monstro que habita o interior do ser humano. Trata-se da história de uma epidemia de cegueira branca, que se espalha por uma cidade, causando um grande colapso na vida das pessoas e abalando as estruturas sociais. Nela, Saramago explora as reações diante das necessidades, incapacidade, impotência, desprezo e abandono.
A obra aborda a ideia dos extremos que se interpolam do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, evidenciado no trecho: "A história humana tem mostrado, não é raro que uma coisa má traga consigo uma coisa boa, fala-se menos das coisas más trazidas pelas coisas boas, assim andam as contradições do nosso mundo, merecem umas mais considerações do que outras". Este fragmento do livro demonstra que geralmente se prestigia o que há de "bom" no "mau", mas se esquece que no "bom" pode haver algo muito "mau". Sendo assim, aquilo que faz bem e aquilo que faz mal, tornam-se questionáveis.
Em sua obra, Saramago ressalta que, mesmo quando todos recuperam a visão, eles continuam cegos pela perspectiva da personagem principal da trama, segundo afirmação dela própria: "Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, cegos que veem, cegos que, vendo, não veem". Mas por que estavam cegos? Em uma conversa no manicômio se tenta explicar a cegueira através do medo, pois "o medo cega", disse a rapariga dos óculos escuros (os personagens de Saramago não têm nome, são descritos pelas suas características pessoais). "Já éramos cegos no momento em que cegamos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cego", conclui a personagem. O medo de tudo que não se é ou não se reconhece - o medo da política, da moral, da sociedade e da própria cegueira os cegou - impedem-nos de ser verdadeiramente quem são, fazendo-os, assim, viver como todos (como cegos).
Para Santo Agostinho, tão cegos são os homens, que chegam a gloriar-se da própria cegueira. Segundo ele, o orgulho e a vaidade são a fonte de todos os pecados. O homem que se sente especial e grandioso é um cego. As honras que recebe, sempre de outros cegos, ampliam a sua cegueira. Por isso, é bom ficar de olhos bem abertos e observar mais um ensinamento do bispo de Hipona: "Prefiro os que me criticam, porque me corrigem, aos que me elogiam, porque me corrompem".