- Antes de rasgar isso que você está dizendo que vai rasgar – ele me disse – acho bom escutar uma história. Daí começou a contar que, há alguns, pegou uma guria num inferninho, em noite de desvario e chuva, e a levou pro apartamento em que morava. Ao acordar, cedinho, ainda meio de fogo, deu com aquele corpo dormindo a seu lado, na vasta cama. E foi lembrando, meio aos pedaços, aos trancos e barrancos, o que tinha acontecido na noite/madrugada. Saiu do quarto imerso na escuridão por causa das cortinas fechadas, se enfiou num estimulante banho quase frio e, antes de ir pro trabalho, com a garota sempre apagada, deixou, sobre o criado-mudo, uma chave, duas notas de dinheiro da época, o cruzeiro, e um bilhete pedindo para a, se podemos chamar assim, hóspede, que, ao se mandar, deixasse o chaveiro com o vigia do prédio. - Bom – ele me olha, seguindo com a história – como eu estava com uma baita ressaca voltei para casa antes das 17 horas. Voltou e, naturalmente, a primeira coisa que fez foi pedir ao cara da portaria a gazua. - Não, não – ele responde – não está comigo. - Como não está com você? A menina não deixou? - Que menina? - Escuta aqui, meu, uma prima dormiu lá em cima, eu saí pra trabalhar e deixei as chaves com ela, pedindo que, ao ir embora, deixasse com você. - Bom, na verdade eu entrei agora. Quem sabe ficou com o outro colega. Isso posto, o rapaz pega uma chave-mestra que alguns condomínios do passado mantinham, e sobe. Ao abrir, o que vê? Nada mais, nem menos, do que uma jovenzinha de seus vinte e pouquinhos anos, a assistir, na maior calma, um filme na TV. - Meu bem – o fulano entra, perguntando – o que está acontecendo? Antes de responder a fulaninha tira de dentro da carteira duas cédulas e mostra: - Você acha – pergunta – que eu posso fazer programa com alguém por esta quantia que você deixou no criado-mudo? - Tudo bem – o dono da casa abre a carteira -- eu me enganei, estava escuro. Aqui você tem mais 10.000 cruzeiros e estamos conversados? - Olha – a guria levanta – você terá que colocar outros 10.000 em cima desses que está me oferecendo. - O que é que há? – O sujeito tenta conter o nervosismo – Você tá querendo brincar comigo? - Negativo, meu. Eu apenas quero grana, bufunfa, não mixarias. Sou uma mulher cara, sabia? - Tudo bem – ele junta as mãos – se você está querendo armar escândalo, vou te dizer um troço. - Pode dizer – vem o desafio. - Não é do meu feitio bater em mulher, certo? Mas, se você facilitar, eu te quebro, tá? Solta a ameaça, ele torna a pegar as cédulas de cruzeiro de valor em decomposição, e balança no ar: - Ou pega ou deixa! Nesse exato instante a sujeitinha vira o rosto para o lado da copa: - Norberto – chama alguém – ele não quer soltar a nota... O sujeito que surgiu, enfiado numa exígua camiseta esticada por músculos, devia ter 1,90 de altura por dois de largura. - Como é que é, meu chapa? – Foi sua primeira frase querendo ser cordial apesar das labaredas. - Bom – o dono da casa vacila – acho que precisamos entrar num acordo. - Grana! – Ecoa um rugido – E não me venha com esse papo de 10 ou 20 mil cruzeiros. Queremos grana! Tudo que você tiver. - Mas meu caro – há a tentativa – a essa hora os bancos já fecharam. Como é que vamos fazer? - O problema é seu. Nesse ponto da narrativa o amigo que me contava a história faz uma pausa. Em seguida pega em minha mão as várias notas de 100 dólares que eu comprara na semana na anterior e que ia rasgar por serem falsas, para concluir: - Guarda, meu querido. Pois foi um pacotinho de dinheiro americano que eu tinha mocozado em cima do armário, tão falso quanto esse que você quer jogar fora, que, naquela ocasião, me salvou... Antonio Contente é jornalista e escritor.