CLÁUDIA ANTONELLI

A pele negra e nossa escura alma branca

26/11/2020 às 08:05.
Atualizado em 26/03/2022 às 17:44
Cláudia Antonelli é intérprete e psicanalista (DIVULGAÇÃO)

Cláudia Antonelli é intérprete e psicanalista (DIVULGAÇÃO)

O paradoxo entre o marco do Dia da Consciência Negra e o ocorrido com João Alberto, em Porto Alegre, é de uma brutalidade que quase excede a possibilidade de compreensão. Ou talvez não. Talvez somente a revele: esta mesma brutalidade da “alma branca”, resguardada no escuro, na sombra, que as câmeras do estacionamento registraram e revelaram. O escuro veio à tona. O escuro da alma humana perplexa diante de outro ser humano, que na superfície – talvez o tom de pele -, revela-se diferente. A rejeição e violência diante do outro persistem. A barbárie humana como daqueles tempos do Coliseu ressurge à luz do dia – exatamente como naquelas batalhas sanguinárias -, diante de todos. (Em realidade, nunca se evadiu). “Os primeiros combates disputados para comemorar a conclusão do Coliseu duraram cerca de 100 dias e se estima que, só nesse período, centenas de gladiadores e cerca de 5 mil animais ferozes tombaram mortos em sua arena de 85 por 53 metros. Os jogos levavam o público ao delírio” (Wikipedia). Homens lutavam entre si, uns com os outros com lanças, espadas, pesadas bolas de ferro; ou contra animais selvagens, leões e tigres em sua maioria. Sempre um saía sem vida. Isto foi em torno do ano 80 d.C. Não é tanto tempo assim, considerando-se uma história de 400.000 anos quando nossos primeiros ancestrais surgiram. Em outras palavras, os gladiadores – mais que tudo seu público e seus imperadores -, nossos parentes próximos. Somos ainda crianças em civilização. Bebês engatinhando, amedrontados pelo outro que nos surge diante. Homens fardados para a proteção do estabelecimento e de seus clientes é pseudo-farda, uma casca fina que não conseguiu esconder o animal selvagem, interno. Sob o suposto manto da civilização, o animal se esconde e vez ou outra, dadas as circunstâncias, ferozmente ressurge. Não é fácil dizer isto, não é fácil pensá-lo. Mas é o que é. Avançamos um passo em direção à civilização, retrocedemos três. Nada segura a natureza do animal que fomos um dia, como disse, não distante. Assim somos. Certo, nem todos são assim. Mas há mais disso do que se esperaria, no ano de 2020. Tanta lei já foi feita, tanto pensamento refletido, tanta cidade construída. Tanto já fizemos para sairmos de estatuto de animais naturais, para seres humanos da cultura. Mas a fera retorna, e se mostra. Colocamo-nos em contornos sociais e civilizatórios para vivermos em sociedade, mas num piscar de olhos tudo isto desmorona, diante do ódio que brota fraudulento, descontrolado, atiçado pela fúria ao outro. Todas as construções de convivência – respeito, espera, regra, palavras – não impediram os dois homens de matarem ao terceiro, com a força da violência. Para convivermos uns com os outros, aceitamos renunciar à satisfação imediata de nosso próprio prazer e necessidade, e refutar a violência. No tempo do Coliseu, ambos se entrelaçavam: prazer e violência, levando o público ao delírio conforme a descrição. O prazer sádico de ver a dor infligida ao outro: a dor sem saída, sem mercê, sem sentido. E nosso ódio nele de forma catártica, descarregado. O que quer que tenha sido dito ou ocorrido naquele supermercado, havia a possibilidade de permanecer no campo da linguagem, quer seja do acordo ou do desacordo – mas no campo da palavra. Quando o ódio veio à tona, passou para o ato, o ato da descarga violenta de dois homens, contra um terceiro. Por sorte foi filmado. Muito disto ocorre, sabemos, sendo jamais registrado. Mas basta um, para vermos onde estamos. Violência contra o negro, contra a mulher, contra a criança, contra o idoso, contra o estrangeiro, contra o homossexual, contra o judeu, contra o pobre, contra o rico, contra a direita, contra a esquerda, contra o outro, contra si, contra os animais e contra a natureza. Não estou certa de nos chamarmos civilização. Num planeta de 4,5 bilhões de anos, meros poucos mais de 100 – quando a lei que revoga a escravidão é assinada - não chega a um rabisco, nesta paisagem. Não desdenho tudo o que já fizemos e alcançamos. Mas diante da natureza humana com a qual nos deparamos, não me convenço de que teremos tempo, sendo que nosso planeta envelhece - a previsão é pequena: de 0,5 bilhão a mais de anos somente, diante dos 4,5 que já tivemos – tempo para conseguirmos de fato, darmos lugar ao outro, além de nós mesmos, neste mundo. Cláudia Antonelli é intérprete e psicanalista ([email protected]).

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