Restos de construção são reaproveitados para construir moradias
Solidariedade e o voluntariado têm sido o diferencial na vida de muitos moradores do bairro Vila Brandina ( Leandro Ferreira/ AAN)
Grandes transformações, geralmente, vêm de pequenos gestos, singelos e até discretos. Uma simples ação que pode mudar a vida de uma pessoa, às vezes, não tem a ver com dinheiro e muito menos com obrigação, mas sim, com respeito ao próximo. A solidariedade e o voluntariado têm sido o diferencial na vida de muitos moradores do bairro Vila Brandina, região Leste da cidade e a responsável por essas intervenções é Leda Vergueiro, presidente da organização não governamental (ONG) e sem fins lucrativos Recicla Lar - Corrente do Bem. Fundada em 2000 em sua casa, que faz divisa com Vila Brandina, a entidade transforma literalmente lixo em lar, ao recolher das calçadas e terrenos as sobras de construções e reformas. O entulho acumulado ganha outra serventia e garante mais segurança e dignidade aos que vivem em condições precárias. “Tijolos, areia, porta e janela velha, enfim, tudo o que é descartado de obras nós reaproveitamos. Não há desperdício de nada. Buscamos melhorar as condições de moradia e de vida dos nossos semelhantes”, afirma Leda, que já perdeu as contas de quantas casas conseguiu ajudar desde de que a ação teve início.Tudo é muito simples e, como a presidente explica, é na base da “cara de pau”: “Peço mesmo, saio por aí e peço”. E não é raro ver tantos materiais pelos bairros próximos à Vila Brandina. Ao avistar um descarte em potencial, Leda entra em contato para solicitar a doação e, depois da autorização do proprietário, vai com o carro próprio para apanhar. “Até aviso a comunidade que não é para chegar e pegar, mesmo que esteja largado na rua, precisa pedir primeiro. É assim que trabalhamos”, explica.Como o trabalho é muito conhecido e respeitado na área, moradores costumam ligar para a ONG para retirar os materiais. Porta, pia, portão, pedaços de madeira, azulejo, cadeira, mesa e tudo mais que não serve para um, serve para outro. E o trabalho, que começou focado na parte social, também dá sua mãozinha para a natureza ao evitar que tudo o que foi revertido em teto fosse para o aterro ou se transformasse em criadouro de mosquitos da dengue. Em tempos de crise ambiental, a ideia de Leda serve de exemplo para que outras pessoas possam fazer o mesmo em seus bairros ou cidades e, dessa forma, ter um ambiente mais saudável.“São quilos e mais quilos de areia, tijolos e cimento não aproveitados que dão outro tom na vida de pessoas que vivem em típicos barracos, feitos de madeirite. Já que não temos dinheiro para comprar tudo novo, reaproveitamos as sobras e o resultado é o que me faz feliz, fico em paz”, diz a presidente.Seguindo a linha do reaproveitamento, a entidade também aceita doações, em bom estado, de eletrodomésticos, eletroeletrônicos e móveis como sofá, cama, mesa, cadeiras e armários. Até alimentos e remédios também são aceitos e distribuídos aos mais necessitados. No ano passado, a ONG conseguiu a doação de duas camas velhas para dois irmãos que estavam dormindo no chão.Hoje, a vizinhança criou o hábito de participar e a ajuda vem de todas as direções. O bairro ficou mais bonito sem aquelas sobras nas calçadas e nos terrenos, que dão um ar de descaso, e o meio ambiente ganhou um forte aliado.CriaçãoHá mais de 20 anos, num dia de Inverno rigoroso, bateram à porta de Leda Vergueiro. Junto com os três filhos, foi avisada de que o Tonhão havia morrido. O senhor em questão era um homem que ficava sempre em frente da casa da presidente, mas com quem ela nunca se envolveu e nunca teve a intenção de se aproximar. Apenas o ajudava e só. Quando recebeu a notícia, relembra, foi uma situação que jamais esqueceria. Ele foi encontrado em seu barraco, perto da casa de Leda, construído abaixo do nível da rua, quase uma casa subterrânea. Do alto do telhado, dava para ver que Tonhão estava coberto apenas por um lençol. Morreu de hipotermia. Emocionada, falou para a vizinhança que se ela conseguisse material de construção, se ajudariam a construir uma casinha para a filha de Tonhão.Após o sim, começou o trabalho. Leda recorda que nunca havia pensado na possibilidade de tirar as coisas da rua e contou com a participação das crianças que, orientadas a pedir, popularizaram a ação. “Chamei as crianças e disse: Vocês vão pedir e não é para roubar, é para pedir. Logo, então, vinha uma e dizia: Tia, a dona daquela casa falou para a senhora ir buscar que ela vai dar uma porta. Depois outra falava que outro vizinho tinha tijolo sobrando e, em mais ou menos um mês, conseguimos juntar material suficiente para levantar uma moradia para a filha do Tonhão”, conta.Foi então que um amigo sugeriu que fosse criada uma ONG e, desde 2000, muitos restos são reutilizados. O nome da entidade surgiu em uma conversa com amigos. Já que ajudavam a reciclar os lares das pessoas, ficou Recicla Lar. Com a ajuda do neto, veio o complemento Corrente do Bem, que se refere ao filme A Corrente do Bem (2000), em que a pessoa beneficiada, ao invés de dizer obrigado precisa repassar o bem para mais três pessoas e daí por diante. “Exatamente o que a senhora faz, vó!”, disse o neto de Leda na época. MutirõesExistem situações em que os restos não são suficientes para socorrer uma determinada situação. Nessa hora, a ONG apela a quem pode doar para adquirir o Kit Moradia, que custa R$ 5,8 mil. Calculado para uma casa de 50 metros quadrados, é composto por cimento, areia, tijolo, pedra, ferro, madeiramento e telha. A construção, assim como as reciclagem dos lares, é feita por voluntários e os próprios beneficiados. “Certa vez, recebemos a doação de vários kits, foi muito emocionante. Para não depender só de doações, realizamos dois eventos por ano para arrecadar fundos. Temos que nos virar”, completa a presidente da Recicla Lar, Leda Vergueiro. SAIBA MAISO filme A Corrente do Bem, de 2000, que inspirou a formação do nome da ONG, trata da multiplicação de boas ações. Eugene Simonet (Kevin Spacey), um professor de estudos sociais, faz um desafio aos seus alunos em uma de suas aulas: que eles criem algo que possa mudar o mundo. Trevor McKinney (Haley Joel Osment), um de seus alunos, incentivado pelo desafio do professor, cria um novo jogo, chamado “pay it forward”, em que a cada favor que recebe você retribui a três outras pessoas. Surpreendentemente, a ideia funciona, ajudando o próprio Eugene a se desvencilhar de segredos do passado e também a mãe dele. O filme foi dirigido por Mimi Leder.