Estamos em pleno Domingo de Páscoa, o primeiro sob a liderança do papa Francisco, e minha ideia era falar só do vinho usado no ritual da eucaristia na missa católica. E já havia prometido a mim mesma que não diria uma palavra sobre a nova Lei Seca, que baniu o álcool em qualquer medida da vida dos motoristas. Jantar fora com um bom vinho não é crime, desde que você volte pra casa de táxi ou seu acompanhante seja abstêmio e assuma o volante.
Mas notícias sobre os efeitos das novas regras pipocam todos os dias. Empresários do setor de gastronomia já anunciam redução de 30% no consumo de bebida alcoólica, sair com os amigos implica em tirar no papelzinho quem vai tomar refrigerante a noite inteira e, a mais surpreendente a meu ver, divulgada no começo de fevereiro: igrejas estão substituindo o vinho canônico pelo suco de uva.
A novidade partiu da região de Maringá (PR), onde paróquias, em atenção à tolerância zero da lei, substituíram o tradicional vinho do padre pelo derivado inofensivo da fruta ou pela versão sem álcool da bebida. As festas em algumas comunidades também estão sob as novas condutas, ou seja, a seco. Eu nunca tinha parado para pensar em como os padres chegam à igreja. Aliás, sempre achei que eles morassem nos fundos ou na casa ao lado. Nas memórias da infância era assim. O pároco vivia pertinho da igreja e tinha pelo menos dois devotos para assisti-lo. E não me lembro de nenhum “carro santo” estacionado na garagem ou na porta do templo, muito menos de alguma missa atrasada porque o religioso ficou preso no congestionamento.
Parece que a minha surpresa em relação a Maringá é fruto da desinformação sobre a rotina dos sacerdotes. Ou distração. Nos meus primeiros anos em Campinas, fui vizinha de porta do padre Machadinho, um senhor extremamente agradável e gentil, que passava a maior parte do tempo em Aparecida, onde era responsável pela biblioteca Mariana, segundo ele, a maior do Brasil. Ia e vinha dirigindo um Fusca verde íntegro, daqueles que fazem os olhos de colecionadores brilharem. Quando via o carro na frente do prédio, já sabia que o meu ilustre companheiro de andar tinha chegado.
De qualquer maneira, soa-me estranho que a Lei Seca afete até o ritual mais emblemático da missa. Há um folclore sobre esse vinho. Muitos acreditam que são bebidas superiores, só acessíveis a homens especiais e que jamais estarão ao alcance do restante do rebanho. Na verdade, não existe padrão único para sua elaboração. As vinícolas que produzem vinhos canônicos o fazem sob critério próprio, ou seja, não há uma uva recomendada ou um estilo que o identifique. Em geral, são doces e com teor alcoólico elevado por meio de adição de álcool vínico, recurso que visa torná-lo mais durável, lembrando que o consumo é lento, de um golinho por cerimônia.
No Brasil, a Salton é a grande produtora de vinho canônico, com cerca de 300 mil garrafas ao ano. Trata-se de um corte de moscatel (50%), saint-emilion (40%) e isabel (10%). Cerca de 80% desse volume é distribuído nas igrejas. O restante pode ser adquirido no mercado por menos de R$ 15. Saúde!
O Santo Sacrifício
No artigo de número 50 do Redemptionis Sacramentum, documento lançado em 2004 pelo papa João Paulo II, está escrito: “O vinho que se utiliza na celebração do Santo Sacrifício eucarístico deve ser natural, do fruto da videira, puro e dentro da validade, sem mistura de substâncias estranhas. (…) Está totalmente proibido utilizar um vinho de quem se tem dúvida quanto ao seu caráter genuíno ou à sua procedência, pois a Igreja exige certeza sobre as condições necessárias para a validade dos sacramentos. Não se deve admitir sob nenhum pretexto outras bebidas de qualquer gênero, que não constituem uma matéria válida.”