iG - Fabiana Bonilha (Cedoc/RAC)
Ao longo da vida, aprendemos muitas coisas à nossa maneira, absorvendo-as de um jeito que só nós sabemos o quanto é melhor. Nem sempre somos bem compreendidos em nossa particularidade, mas ainda assim, procuramos manter estes procedimentos individuais, tal como os aprendemos. Uma das coisas que eu carrego como um traço particular é o fato de eu ter aprendido a ver as horas no relógio de pulso em sentido contrário. Desde pequena, sempre utilizei um relógio em braile, um dispositivo que possui as marcações dos números em relevo e que conta com uma abertura lateral para que o usuário coloque a mão sobre o mostrador. Utilizando este recurso, eu me acostumei a ver as horas em posição inversa, ou seja, mantendo o número 12 à esquerda, e não à direita, como é usual. Não faço ideia da origem desta inversão. Acho muito improvável que alguém tenha me ensinado assim quando eu era pequena. Afinal, ninguém teria interesse em ensinar uma criança a ver as horas no sentido oposto. Mas o fato é que assim eu me adaptei, sem que até hoje haja a menor chance nem a menor motivação da minha parte para reverter o caso. A maioria das pessoas dizem que ver as horas deste jeito é muito mais difícil, e não concebem a ideia de que eu tenha me habituado a esta condição. Elas, ao olharem para meu relógio, me advertem espantadas, dizendo que ele está na posição invertida. Respondo que não, , e explico que este é simplesmente o meu jeito de olhar as horas. Certa vez, uma dessas pessoas não se conformou com a minha resposta, e, tirando o relógio do meu pulso, colocou-o em mim invertendo o lado, buscando resolver o problema. Então eu o abri e, ao tentar consultá-lo, disse: “Nossa, mas agora sim ele está ao contrário!” E imediatamente corrigi a posição, recolocando o relógio do lado que para mim era o certo. Esta experiência com o relógio de pulso me trouxe algumas lições importantes. A primeira delas é a ideia de que o contrário é um conceito relativo, como também o são muitos outros conceitos que dizem respeito às nossas atitudes. Cada pessoa pensa e age segundo o seu próprio referencial, e, muitas vezes, tende a adotar este referencial como único. Ao se construírem conceitos absolutos, são criadas categorias de valor, que não consideram outras possibilidades conceituais. Daí surge toda forma de enquadramento e todo empasse para se lidar com as diferenças. Ao atribuírem juízo de valor às situações, , as pessoas usualmente esquecem de fazer perguntas essenciais, tais como: Isto é o contrário em relação a quê? Este é diferente em relação a quem? Além disso, desta experiência extraí a lição de que o ato de ensinar é muito distinto do ato de aprender. Quem ensina não tem controle sobre o que ensina, nem sobre a forma como aquilo irá ser absorvido pelo aprendiz. Por isso, não existe o jeito certo de ensinar, nem tampouco a maneira certa de aprender. Cada um tem um determinado modelo mental, a partir do qual constrói sua visão de mundo e sua estratégia de ação. Assim como eu aprendi a ver as horas em sentido contrário, todas as pessoas adquirem seu próprio modo de realizar cada tarefa, e este aprendizado é pessoal e intransferível. Nossos traços individuais, alguns tidos até mesmo como esquisitices, constituem o que podemos chamar de idiossincrasias, isto é, aquilo que faz cada um ser tal como é, sem ressalvas nem subterfúgios. * Fabiana Bonilha, Doutora em Música pela UNICAMP, psicóloga, é cega congênita. E-mail: [email protected]