ZEZA AMARAL

O recomeço do nada

Zeza Amaral
igpaulista@rac.com.br
21/07/2013 às 05:00.
Atualizado em 25/04/2022 às 08:10

Sou do tempo das palavras de ordem que anunciavam o bom futuro aos homens do planeta. Acreditava-se que éramos tão puros quanto o orvalho que caia lá fora, na calçada do bar, onde se discutia, cantava-se e, sobretudo, bebia-se pinga e vinho baratos. Tempo de sonhos honestos e de honestos homens.

Sou do tempo em que se andava atrás de uma Pátria que redimisse gerações oprimidas e da geração de homens que morreram na procura ou que se cansaram e pararam pelas barrancas da realidade nua e crua. Discutia-se, cantava-se e bebia-se em homenagem a todos eles, e a si próprio, também. E a Pátria desejada estaria nos homens das fábricas e dos campos, que julgávamos ser ainda mais pobres em sonhos e esperanças, e, portanto, deles mais necessitados.

Sou do tempo em que era proibido procurar uma Pátria, assim como era solenemente proibido aos professores o ensino da dúvida e da crítica. Era até mesmo proibido proibir, o que conferia o caos reinante entre jovens tropicalistas que amavam o turbante de abacaxi e bananas de uma portuguesa que não tinha nada com isso — uma pequena e notável cantora, como bem definiu o compositor Assis Valente.

Sou do tempo em que trabalhadores paravam para ouvir palavras de incentivo em meio a um ruído de microfonias de um alto-falante Delta, acinzentado como a vida dos operários que custavam crer ser eles a Pátria que se sonhava então. Sou do tempo das assembleias e fugas rápidas, do bafo do gás lacrimogêneo, dos inocentes cavalos escorregando em covardes bolinhas de gude.

Vivi o tempo de um operário que se achava dono daqueles sonhos e, buscando auxílio divino nas igrejas, também aceitou o convívio teórico de intelectuais, os grandes oráculos e fiéis depositários de ideais políticos de além-mar, senhores absolutos e sabedores únicos do verdadeiro caminho das pedras, para o encontro da verdadeira Pátria. Vivia-se o tempo da infalibilidade político-sindical.

Vivi o tempo das legiões de militantes empunhando bandeiras em esquinas e panfletando muros e postes a troco de estarem juntos a outros sonhadores, repartindo o pão com mortadela e o conhaque barato. Acreditávamos nos líderes e nos intelectuais que pouco se esforçavam em nos tirar da tosca ignorância política, dizendo que nos ajudavam a pensar o partido, sem outro interesse senão o de nos aliviar da carga pesada das dúvidas que tínhamos sobre tudo e todos, embora nos sobrasse sempre a responsabilidade de implantar a solução.

Toneladas de papel impresso nas gráficas de sindicatos e associações, com dinheiro pago por trabalhadores, foram por anos distribuídos em portas de fábrica, estádios de futebol, escolas e esquinas brasileiras por uma gente mal paga e insone, sob o frio da madrugada, ou sob o sol reprimido das praças. Tínhamos orgulho das palavras de ordem dos nossos líderes e intelectuais. Cada panfleto era uma bandeira a ser oferecida como um alimento ao povo carente de sonhos e esperança, assim como dela também nos alimentávamos.

Vivi um tempo em que os sonhos eram eternos e imortal também era a esperança. E hoje não tenho tempo para nada. Nem para reclamar. Pois não se deve chorar ao enterro de seus próprios sonhos. Enterra-se, apenas. É o fim e um novo começo. Por ora, é o vácuo enlutado dos sonhos mortos.

Agora vive-se o tempo do nada. E nada foi o que o meu tempo ofereceu. E esse nada despertou uma geração de jovens que tem de tudo, quatro refeições diárias, boas escolas e bons médicos, mas que também são desrespeitados e humilhados como cidadãos pelos nossos governantes e parlamentares. E o operário que se fez ex-presidente governa uma marionete na tocaia da covardia política, pois é a Soberba que o dirige para um cadafalso que inventou para si: na encruzilhada do Poder, onde todas as setas indicam o real vazio do Nada, onde nem a solidão lhe fará companhia. Nem mesmo o pó dos ossos dos sonhos mortos. E o bom de voltarmos à estaca zero é que podemos começar tudo de novo, mais uma vez e sempre. E assim sempre será.

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