Quinze pacientes atendidos numa tarde. Hipertensos de difícil controle, diabéticos complicados, alguns sob seus cuidados médicos havia mais de dez anos. Já passam das 20h. Cansado, entrara no consultório às 13h e não tivera nem tempo de tomar um café. É muito difícil sentir o sofrimento humano, mas definira há mais de trinta anos que essa era sua missão. É um trabalho mental e físico cansativo, mas com ele criara dois filhos e tinha um padrão de vida razoável.
Não tão bom quanto ao dos políticos de Brasília, mas um bom padrão de vida. Tem uma casa confortável, uma poupança para algum imprevisto, paga seguro de saúde, seus filhos estudaram em boas escolas, todos têm curso superior e um bom emprego. Tudo isso passou pela sua cabeça enquanto tirava seu jaleco e apagava as luzes de seu consultório. Ah! Lembrou-se que era o dia de seu aniversário e que sua família o esperava para o jantar. Viriam os filhos e as noras, talvez algum amigo, da velha-guarda, até apareça por lá com um bom uísque ou uma garrafa de vinho.
Toma o elevador e desce respirando fundo e aliviado. Entra no carro e pensa:
- Ufa! Se tiver sorte e o trânsito colaborar, em mais 30 ou 40 minutos estarei em casa.
Sai da garagem e o primeiro semáforo, logo na esquina, se fecha. No minuto seguinte, saindo do nada, aproxima-se um pivete, ainda imberbe (calculou 14 ou 15 anos) e com a mão na cintura, de forma ameaçadora ordena:
- Ô meu, passe o seu relógio se não te apago!
Nunca entenderia sua reação, talvez estimulado pela figura esmirrada do assaltante, mas “em um piscar de olhos” acalmou-se e disse ao garoto com voz segura e serena:
- Calma, tudo bem. Veja, esse relógio eu ganhei de minha família quando fiz 50 anos. Tem um tremendo valor sentimental para mim. Você vai vendê-lo por R$50! Te dou R$ 200 para ficar com o meu relógio. Tudo bem?
- Tudo bem, mas passa logo a grana!
Abre a carteira com bastante cuidado e para surpresa vê que não tem esse dinheiro. Recebera alguns cheques e comprovantes de consultas que deixara no consultório Não se apavorou.
- Garoto, estou sem dinheiro. Vou te dar um cheque e prometo que não farei nada. Só quero ficar com meu relógio.
De forma agressiva e ameaçadora ouve o aviso:
- Ô mano! Eu te apago!
- Calma, te dou minha palavra. Posso preencher o cheque?
Assim, lentamente, com aprovação do pivete, pegou o talão de cheques e preencheu com todo cuidado: R$200.
- Ô meu, eu sei onde você trabalha e se você fizer alguma trapaça eu te apago. Vai levar chumbo.
- Fique calmo, não vou fazer nada. Posso ir?
E lá foi ele feliz por não ter perdido seu relógio. Durante o jantar contou sua proeza à família e aos seus amigos. Da esposa e filhos recebeu reprimendas pelo perigo que passara. De seus amigos, no entanto, admiração pela sua frieza. Durante a madrugada, sem conseguir dormir, teve dúvida se sua atitude fora consequência de sua frieza ou o do cansaço e da prostração do momento. Restou um sentimento misto de surpresa e admiração.
Passou acompanhar sua conta bancária e depois de dois dias o cheque fora descontado.
Mais uma experiência de sua vida, vencida com calma e confiança, como sempre o fizera.
Depois de uma semana estava ele em casa descansando depois de outro dia extenuante quando o telefone toca.
- Meu Deus, logo essa hora algum paciente vai ter problema! Justo no momento do Jornal das Dez!
Atende ao telefone.
-Alô!
-Alô. Ô mano! Você foi muito legal. Já peguei a grana. Tô telefonado porque tenho mais três relógios Rolex como o seu. Quer comprar por duzentas pilas cada?
Um frio desceu por sua espinha. Lembra-se somente que com a voz um pouco trêmula respondeu:
- Não, obrigado!
Tomou então duas atitudes: trocar o número dos telefone de casa e impedir ele que fosse publicado na lista telefônica.