Para mim, enxergar com a mão fazia todo sentido, e representava minha identidade e minha condição
Quando eu era pequena, meus familiares me ajudaram a conhecer e a entender minha condição enquanto pessoa com deficiência visual. Para tanto, eles constantemente me diziam que eu enxergava com a mão, e, usando a mesma expressão, referiam-se a outras pessoas que eram cegas. Assim, quando queriam dizer que algum amigo ou conhecido tinha deficiência visual, falavam que ele enxergava com a mão, algo que rapidamente me remetia ao meu próprio modo de ver. O que poderia parecer um eufemismo, foi na verdade um conceito importantíssimo para que eu compusesse minha visão pessoal de mundo. Para mim, enxergar com a mão fazia todo sentido, e representava uma forma exata de expressar minha identidade e minha condição. Com o tempo, fui compreendendo de uma forma mais ampla o que significava enxergar, e fui vendo que outras vias sensoriais também eram fontes de visão. Minhas mãos, juntamente com meus ouvidos, eram meus olhos, e, tendo-os como guias, minha visão realmente nunca seria incompleta. Enxergar com a mão é para mim uma questão de sobrevivência. Muitas atividades só me são possíveis porque é assim que eu posso ver. A leitura fluente em Braille, por exemplo, requer que se enxergue muito bem com as mãos, e que não haja imprecisão visual com o uso delas. Para ler em Braille, é preciso ter mãos que enxerguem plenamente, e que sejam capazes de identificar o tamanho milimétrico de cada ponto, e ao mesmo tempo, a configuração global dos pontos em uma palavra. Enxergando com a mão, eu também pude construir conceitos sobre muitas formas e objetos, vários deles representados em miniatura para que eu os pudesse conhecer. Minha experiência também me fez aprender que algumas coisas não eram apropriadas para serem vistas com as mãos, embora a princípio tivessem sido desenvolvidas para uso delas. Infelizmente, durante minha formação escolar, professores e especialistas insistiam em reproduzir em relevo os mesmos desenhos criados para os videntes, o que para mim não fazia o menor sentido. Ocorre que o tato não tem a mesma estrutura perceptiva que a visão, e por isso, reproduções em relevo não possuem, isoladamente, significado para quem o utiliza. Produzir material didático para ser apreendido pelo tato é uma tarefa que precisa ser construída junto com as pessoas que enxergam com a mão, e não a partir do referencial de profissionais videntes. De fato, o que o tato sente a visão não vê, e, por isso, não há como transpor diretamente a assimilação das informações de um sentido para o outro. Parece quase desnecessário dizer que enxergar com a mão não é uma deficiência, é tão somente uma forma particular de ver. Ao me contarem que eu enxergava com a mão, meus familiares me fizeram crer realmente nessa ideia, e assim me deram chance de desenvolver a ferramenta mais poderosa de que eu dispunha!