ZEZA AMARAL

O Outono das almas tristes

30/05/2013 às 05:00.
Atualizado em 25/04/2022 às 14:14
Colunista Zeza Amaral (Cedoc/RAC)

Colunista Zeza Amaral (Cedoc/RAC)

A companheira Betinha está banhando galhos e folhas de uma pequena palmeira. A tarde outonal está marmórea e forte como são as tardes de quintais e outros apartamentos avarandados. Solto os olhos para as tardes longínquas da cidade e me espanta ainda lembrar das nossas mães preparando a mesa para o café da tarde, chaleira fumegando na chapa do fogão elétrico, o leite fervendo, o cheiro doce do bolo de fubá assando no forno, a tarde cristalina, e agora fria, se esparramando sob os cobertores das horas.

Nem pensar nem desejar. Sou, como tantos, dono de deveres e haveres; sou o que se diz por aí um homem comum. Tenho companheira que dá banho em palmeira empoeirada e tenho um passarinho que canta longo em tardes outonais, canário americano, ora veja!, batizado Dércio Marques, saudoso menestrel recém-partido e um raro amigo lá de casa.

Faço coisas por vontade própria e outras por impulso de momento que, na maioria das vezes, não significam absolutamente nada, embora, na hora da feitura, parecem soluções fantásticas para os males da humanidade. Aprendi comigo mesmo a respeitar mais os deveres que os direitos constitucionais. Periélio e Afélio se entendem assim por cada um respeitar suas regras terrenas e solares; e o Outono que está aí só empreendeu viagem porque tem destino e hora marcada pelos deveres de um sol e de um planeta por ele arrastado, que apenas se faz girar e só girar e seguindo a Estrela Maior a mais de 792 mil quilômetros por hora. Nasci em algum ponto do Universo e para lá jamais voltarei — e jamais voltaremos.

Portanto, seria bom nos entender por aqui mesmo, porque aqui ficaremos para sempre. Daí essa angústia de procurar sempre a esperança dos artistas que me dá música, literatura, esculturas e quadros de Egas Francisco, Jota Toledo, Bernardo Caro e Salvador Dali.

Desde que o mundo gira no Cosmo, as estações acontecem em meio a uma harmonia nascida entre fenômenos violentos, como os vendavais solares, vulcões, terremotos, borrascas glaciais, tornados e maremotos. O homem não sabe viver em harmonia. Gosta mesmo é das divergências emocionais, esportivas, políticas e religiosas, a exigir, sempre, que o outro tenha os seus mesmos desejos e sonhos. É a beleza do contraditório, da dúvida, da busca acadêmica que deseja a verdade basilar. Talvez um dia...

O Outono é assim. Os dias são mais curtos e amenos. E as noites se alongam por debaixo dos leves cobertores. Vinhos densos terão acolhida nos lábios dos amantes. As praças e os campos se cobrem com o dever das folhas e frutos maturados, ao retorno do chão. Muita neblina e pouca visão. E é por dever ancestral que colherei as tardes outonais em passados quintais e as trarei todas à varanda do apartamento: para que elas vejam a toalha de crochê que descansa à mesa de jantar, o passarinho amigo que canta longo e também os olhos espertos e acastanhados da namorada e sempre companheira. Enfim, que se apiede o Outono das almas que se deixaram esquecidas de suas lembranças. E mais: que elas saibam que estamos no mesmo barco, à deriva pelos campos do Universo. E isso é simplesmente a vida que levamos.

Bom dia.

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