RODRIGO DE MORAES

O número

18/03/2015 às 05:00.
Atualizado em 24/04/2022 às 02:15

Uma das frustrações de minha época de repórter: nunca ter conseguido, da boca de alguma autoridade, uma declaração sobre a quantidade de pessoas presentes em um evento de massa. Cobri uns tantos deles, principalmente shows, de dimensões várias: de Linkin Park e Roger Waters no Morumbi e Pearl Jam no Pacaembu a Creedence Clearwater Revival (ou o que restou desse lendário grupo) no Rodeio de Jaguariúna. “Jornalista adora números”, já ouvi alguém dizer, ainda que em tom condescendente. De qualquer forma, é verdade: cifras cumprem papel essencial em dimensionar uma série de coisas. No caso dos eventos acima, ao quantificar o número de pessoas que compareceram às apresentações, falam muito sobre a importância e/ou popularidade dos artistas e da influência que eles exercem. E um repórter deve ficar atento a isso.   Nas reportagens que assinei nunca deixei de incluir esse dado, mas as fontes, na maioria absoluta dos casos, eram as assessorias de imprensa, que se baseavam, creio, mais no número de ingressos colocados à venda do que em um cálculo de lotação do espaço.   Aliás, uma das barrigas que dei em minha carreira (no jargão, barriga é metáfora para “informação errada”) foi na cobertura um grande festival de rock em São Paulo, lá em 2004/5: a assessoria cochilou, me forneceu um número desatualizado e eu o passei adiante. No dia seguinte, meu erro piscava em neon na página do jornal.   Outra foi quando acreditei na estimativa de público dos organizadores de um festival de música eletrônica que quase terminou em tragédia (um frequentador fora baleado nas costas) na Concha Acústica do Taquaral, em um domingo, salvo engano, de 2004. A informação que me passaram ultrapassava os limites da própria capacidade do espaço e do bom-senso (que me faltou no momento): era inflada em dezenas de milhares de pessoas.   No dia seguinte, lá estava minha reportagem, maculada pelo dado fantasioso — que um jornal concorrente tratou de rebater na edição do dia seguinte quando publicou matéria sobre o caso. A reportagem citava, sabiamente, uma declaração da Guarda Municipal sobre o número de frequentadores — dessa vez em cifras realistas, para contestar, como se zombasse de minha inépcia de foca, o número absurdo que meu texto trazia.   A GM, aliás, e também a PM, são instituições habilitadas — assim reza o manual, mesmo que não escrito, das boas práticas de jornalismo — a fornecer com certa precisão o número de pessoas presentes em uma aglomeração, seja em um estádio, em um comício, seja em um carnaval de rua ou uma manifestação.   Acontece que sempre dei azar quando recorri a elas. No show do Creedence que mencionei acima, vi-me dentro de um inusitado jogo de empurra: abordei uns GMs, me identifiquei como repórter e indaguei sobre a estimativa de presentes no recinto da apresentação. Me encaminharam para o guarda fulano. Este, por sua vez, direcionou-me ao superior sicrano, e assim por diante até que eu desisti e divulguei o informado pela assessoria.   Estou aborrecendo você, resignado leitor, com essas reminiscências porque, acompanhando o noticiário sobre as passeatas de domingo, chamou-me a atenção a discrepância entre duas estimativas sobre o número de manifestantes na Avenida Paulista.   A PM, lançando mão de cálculos sofisticados baseados em observação aérea da via e adjacências, anunciou que 1 milhão de pessoas estavam presentes. A Folha de S.Paulo, usando avaliação do Datafolha, afirma que esse número foi de 210 mil — pouco mais que 1/5 da cifra anterior. É uma diferença enorme de resultados.   Quem está certo? As metodologias são diferentes, e é sensato imaginar que cada um sabia da responsabilidade que tinha em mãos.   A Folha, como querem alguns, foi tendenciosa? Em consonância com alguma agenda pró-governo, desinflou o número real de manifestantes? Acho pouco provável. Seja como for, um número diz muita coisa, e o jornal estava muito ciente disso ao estampar em sua manchete de segunda-feira o resultado da mobilização contra o governo. Seja 200 mil ou cinco vezes isso, é bem mais do que atrai um show de rock.

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