CECÍLIO ELIAS NETTO

'O mundo gira e a Lusitana roda'

Cecílio Elias Netto
28/06/2013 às 05:00.
Atualizado em 25/04/2022 às 11:19

Sei lá se ainda existe a Lusitana, empresa de transportes. Mas, pelo menos em meus ouvidos, o mote permanece: “O mundo gira e a Lusitana roda”. Gira, gira, gira mundo, girou? O fato é que — girando e girando — o mundo, visto com bons olhos, é uma festa. E, com bom humor, engraçadíssima é a vida. Nada se cria, tudo se repete.Uma das filhas me enviou um recadinho eletrônico. Percebi o coração estar-lhe saltando no peito. Angustiada, contava-me que meu neto, de 17 anos, estava preparando-se para ir a uma das manifestações populares: “Pai, não consegui evitar. Reze por ele, para que nada aconteça”. Não resisti e, sozinho, caí na gargalhada. Minha filha sofrendo, meu neto protestando e eu, de longe, todo orgulhoso, sentindo-me vingado.Depois, foi o filho, contando-me de sua aflição por não ter conseguido evitar que outros dois netos meus, em outra cidade, fossem para as ruas. “Pai, eles vão à escola e voltam de carro. Vão protestar contra o quê?” Um dos garotos, indignado, lhe havia respondido: “Eu vou de carro, mas tenho amigos que andam de ônibus. Estou ao lado deles!” E, outra vez, não resisti e — novamente orgulhoso — quase chorei de tanto rir. Como se nada de novo houvesse acontecido no mundo, lá estavam meus netos repetindo: “Povo unido jamais será vencido”. Eta, mundo velho sem porteira!Nada há, pois, de novo sob o Sol. Lembrei-me de quando, aos 17 anos — e ainda no colegial — numa madrugada, bati, bêbado, à janela de minha namorada, que se tornou mãe de meus filhos e seria, se viva ainda fosse, avó daqueles meninos. Vibrando de esperanças e de civismo, eu lhe falei que desejava casar-me com ela mas havia um problema: eu decidira ser guerrilheiro. E, como rebelde e revolucionário, eu viveria na clandestinidade. Imaginei e lhe expus o que seria nossa vida: “Nos intervalos da luta, eu virei a seu encontro e vou pedir que você me lave as roupas, pois eu não terei nada de meu”. Ela concordou. E eu — feliz e realizado — entornei o resto da garrafa de rum, em homenagem a Fidel Castro e Che Guevara que ainda lutavam em Sierra Maestra.Doutra feita, falei para meu pai que eu iria embora para Cuba, ajudar Fidel e Guevara a cortar cana e produzir açúcar. Meu pai me olhou fixamente e, com serenidade, falou: “Se você quer cortar cana, filho, não precisa ir a Cuba. Eu converso com usineiros amigos meus e você corta cana aqui mesmo em Piracicaba. Temos canaviais imensos. Por que não em Capivari?” Revoltei-me, tomado por outra certeza revolucionária: “Não confie em ninguém com mais de 30 anos!” E não cortei cana.Mas pedi carona a um caminhoneiro amigo e lá me fui ajudar a construir Brasília, alucinado pelo ritmo de Juscelino, pelo “gigante que despertou”, a nova era, a “Capital da Esperança”. Feliz, tomado de ardor cívico, ajudei a fazer meia parede do agora Hotel Nacional. E — já tendo conhecido Luís Carlos Prestes, também “Cavaleiro da Esperança” — lancei meu “brado heróico, retumbante”: "Go home, yankees! Abaixo o FMI! Morte ao imperialismo!”Já trabalhando em jornal, tive certeza de, sozinho, poder vencer o capitalismo selvagem. E escrevi um artigo entoando loas aos soviéticos, à vitória de Fidel e de Guevara em Cuba, “ou ficar a Pátria livre ou morrer pelo Brasil”. O diretor, com o artigo nas mãos, me falou: “Quando você quiser escrever o que quiser, tenha seu próprio jornal. Aqui, quem manda sou eu”. Ora, cadê a liberdade de expressão, cadê o direito à opinião própria, que raio de democracia era aquela? O diretor sorriu e me mandou escrever sobre esportes.Jurei haver de ter meu próprio jornal. E tive-o. Deu azar: o golpe militar chegou e lá me fui, eu, engaiolado aqui, detido acolá, processos e mais processos. A mãe de meus filhos, generosa, consolava-me: “Você não queria lutar pelos seus ideais? Então, continue”. E meu pai, desconsolado, tratando-me — homem casado e com filhos — como criança: “Filho, se você montou no cavalo, aguente o trote”. E não é que aguentei?Não sei se a Lusitana ainda roda, mas o mundo continua girando. E girou muito, desde aquele hormonal fervor cívico. Girando, girando, o mundo e a vida fizeram-me compreender melhor a observação — à época atribuída ao pensador Gilberto Amado — de um realismo cruel: “O jovem que não for comunista é um canalha; o adulto comunista é um tolo”. Vendo, agora, também meus netos saindo às ruas, conforto-me com a constatação de que, quando jovem, não fui canalha. E de que, adulto e na velhice, não sou mais tolo.Eu sou meus netos ontem. Tomara eles sejam melhores do que o avô amanhã.

Assuntos Relacionados
Compartilhar
Correio Popular© Copyright 2025Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por