Feres Chaddad Neto é o novo colunista do jornal Correio Popular (Elcio Alves/ AAN)
Desde a estreia desta coluna no Correio Popular, há duas semanas, temos recebido várias manifestações dos leitores, tanto de cumprimentos pela relevância da iniciativa, como de dúvidas sobre a própria estrutura do sistema nervoso. Vamos, portanto, apresentar como funciona o complexo sistema nervoso humano – composto pelo encéfalo, a medula espinhal e os nervos do corpo. Fundamentais para a vida, é esse sistema que nos permite sentir, mover e pensar. E, no centro de tudo, está o cérebro, parte do encéfalo que, no ser humano, é composto também pelo cerebeloe tronco encefálico. Em nossa experiência diária, como professor, pesquisador e neurocirurgião, podemos perceber o quanto as pessoas de modo geral desconhecem e temem tudo o que se refere a doenças cerebrais. Não é para menos. O cérebro ainda esconde mistérios a serem desvendados pela ciência. A cada dia, novas e promissoras conquistas são feitas, mas ainda há muito a avançar. Nosso intento aqui é ajudar o leitor a compreender o funcionamento, as doenças, suas causas, formas de prevenção e tratamentos disponíveis na atualidade. Mas, cumpre destacar, somente o médico tem condições de diagnosticar cada caso em particular. Propomos, portanto, apresentar um panorama da medicina moderna, como ajuda, esclarecimento e ensinamento geral, necessários à defesa da saúde e da vida, aproximando o leitor da ciência e do médico. Por isso, estamos abertos a responder pontualmente dúvidas que venham a surgir. Esta coluna será, portanto, um espaço para diálogo. Fique à vontade para enviar suas dúvidas, questões e comentários para o e-mail [email protected]. Na medida do possível, vamos contemplar prioritariamente os temas que afligem o público. Nesta edição de hoje, vamos traçar um panorama histórico de como a ciência se desenvolveu nessa área. Ancestrais pré-históricos e Antiguidade Considerado por muitos como o “pai da medicina”, o grego Hipócrates (460-377 a.C), escreveu vários tratados sobre saúde. Na obra “Acerca das doenças sagradas”, ele afirma: “O homem deve saber que de nenhum outro lugar, mas do encéfalo, vem a alegria, o prazer, o riso e a diversão, o pesar, o ressentimento, o desânimo e a lamentação. (...) Sou da opinião de que o encéfalo exerce o maior poder sobre o homem”.Mas antes mesmo de Hipócrates, há evidências que nossos ancestrais pré-históricos já entendiam a importância que o cérebro tem para a vida: foram achados crânios com mais de 7mil anos abertos cirurgicamente enquanto a pessoa ainda estava viva. A abertura desses orifícios (um processo chamado trepanação) tinha o intuito de curar e não matar. Alguns sujeitos passaram por múltiplas cirurgias cranianas, provavelmente para tratar de dor de cabeça ou transtornos mentais, ou para “expulsar” espíritos malignos, como se acreditava na época. Em praticamente todas as partes do mundo onde o homem viveu foram achados crânios com sinais de trepanação. Esta é, provavelmente, o procedimento cirúrgico mais antigo de todos. No Egito antigo, escritos de médicos datados de 5 mil anos atrás, mostram que eles conheciam muito bem os sintomas de danos cerebrais. Mas, diferentemente de Hipócrates, os egípcios pensavam que era o coração, e não o cérebro, a sede da consciência e do pensamento. No processo de mumificação dos mortos, por exemplo, o cérebro era removido pelas narinas e jogado fora. Já para os gregos, não havia unanimidade. Se, como vimos, Hipócrates considerava o cérebro o órgão das sensações e da inteligência, Aristóteles (384-322 a.C.), entretanto, pensava mais como os egípcios: para ele, o coração era o centro do intelecto e o cérebro era como um “radiador” para esfriar o sangue superaquecido pelo coração, vindo daí o temperamento racional dos humanos. O médico mais importante dos romanos foi Galeno (130-200 d.C), que concordava com Hipócrates. Como médico dos gladiadores, deve ter visto muitos casos de lesões cerebrais e da medula espinhal. Além disso, ele também dissecava animais e pode identificar que o encéfalo de uma ovelha era composto por duas estruturas distintas: o cérebro e o cerebelo. Como percebeu que o cerebelo é mais firme e o cérebro mais macio, deduziu que este deveria ser o destinatário das sensações, enquanto que o cerebelo comandaria os músculos. Ainda que sua dedução pareça sem sentido, ela não está longe da verdade. O cérebro é o órgão das sensações e percepções, sendo o centro da memória, e o cerebelo, o centro do controle motor. Galeno observou que o encéfalo tinha espaços ocos, assim como as câmaras do coração (ventrículos), por onde circulavam fluidos ou humores. Sua visão dominou por mais de 15 séculos. Renascença e os avanços da anatomia moderna Durante a Renascença, o anatomista belga Andreas Vesalius (1514-1564), considerado o “pai da anatomia moderna”, adicionou novos detalhes à estrutura do encéfalo, a partir de suas descobertas dissecando o corpo humano. Ele escreveu a famosa obra “De Humani Corporis Fabrica” (Da Organização do Corpo Humano), composto por sete livros, dos quais um é sobre o sistema nervoso e um específico sobre o cérebro. Considerado um dos mais influentes livros científicos de todos os tempos, é conhecido sobretudo por suas ilustrações perfeitas. Ele e outros cientistas posteriores deixaram de focalizar apenas nos ventrículos e passaram a dar mais importância à substância cerebral. Perceberam que o tecido era dividido em duas partes: a substância branca interna e a substância cinzenta externa, cada uma com uma função. A branca, que tinha continuidade com os nervos do corpo, foi indicada como contendo as fibras que levam e trazem informações para substância cinzenta. No final do século XVIII, o sistema nervoso humano já estava completamente dissecado e descrito em detalhes: tinha uma divisão central, que consistia do encéfalo e da medula espinhal, além de uma divisão periférica, constituída da rede de nervos que percorrem o corpo. Também já se sabia que o cérebro tinha o mesmo padrão de saliências (giros), sulcos e fissuras em sua superfície, o que permitiu dividi-lo em “lobos”, ou seja, diferentes áreas com diferentes funções. Estavam lançadas as bases para a localização das funções específicas nas diferentes partes do cérebro, o que ocorreu apenas no século XIX. É o que veremos na próxima coluna. Até lá.