SEM IDENTIDADE

O longo caminho a percorrer pelos esquecidos

Muitos sofrem com o abandono das famílias e ficam presas à sina de viver em um hospital

Fábio Gallacci
14/04/2013 às 05:09.
Atualizado em 25/04/2022 às 20:31
Maurício Valente está há seis meses morando em hospital de Campinas (Elcio Alves/AAN)

Maurício Valente está há seis meses morando em hospital de Campinas (Elcio Alves/AAN)

A assistente social deu o recado que pegou de surpresa o então morador de rua Maurício Valente, de 68 anos, dependente do álcool há quatro décadas, que está internado desde novembro no Complexo Hospitalar Ouro Verde, em Campinas. "Você vai receber uma visita!" , disse ela.

Quando o repórter-fotográfico do Grupo RAC Elcio Alves chegou ao local, o paciente começou a chorar...de emoção. Era a primeira pessoa sem ser um médico, enfermeiro ou funcionário do local que havia procurado por ele ali em meses. Além de serem "invisíveis" para boa parte da sociedade, muitas pessoas também sofrem com o abandono consciente da família.

Os problemas provocados pelo consumo de álcool e drogas, por exemplo, tornam impossível o convívio. Nesses casos, para muitos, o melhor é simplesmente apagar da memória e seguir como se o outro não existisse. A questão econômica também pesa e transforma o que seria um reencontro marcante em um problema sem solução.

Recuperado de lesões pelo corpo e uma infecção, Valente, que ainda tem visão prejudicada, poderia obter alta médica imediatamente, mas não tem para onde ir. Duas irmãs foram localizadas no distrito de Sousas, mas elas se negam a buscá-lo. "Já fizemos diversos contatos para possibilitar essa reaproximação, mas elas dizem que o vínculo familiar se perdeu" , informa o hospital. Além disso, as duas alegam que não têm condições financeiras de recebê-lo novamente.

Na conversa com o fotógrafo que virou visita, o senhor caminha pelos corredores do hospital, conversa com desenvoltura, menciona o nome das irmãs; aponta qual é a mais velha e a mais nova. Ele afirma ter trabalhado como pedreiro por muito tempo e que, por isso, não conseguiu ter uma carteira assinada. O resultado é que não conquistou até hoje o direito da aposentadoria, dinheiro que poderia ajudá-lo agora. Seu teto é o Ouro Verde. Sua família, os funcionários.

Caminho

Outras pessoas também estão presas ao mesmo destino de "morar" no hospital, sem outra opção de um caminho mais seguro no momento. Com 71 anos e sofrendo de Alzheimer, um homem passa os dias em uma cama. Com dificuldades para se comunicar, ele depende totalmente dos funcionários para sobreviver. Está internado desde dezembro do ano passado. A pouca informação conseguida indica que ninguém de sua família está vivo, o que torna tudo ainda mais complicado.

No mesmo hospital, G.M., de 49 anos, vítima de um acidente vascular cerebral que o deixou com sequelas neurológicas, foi considerado desaparecido e morto pelos parentes por mais de duas décadas. Após todo esse tempo, ele ressurgiu e não tem a menor ideia de onde poderá morar. Recentemente, a assistência social do Ouro Verde descobriu que ele tem uma irmã vivendo em Campinas. Mas, pobre e morando em uma casa de apenas um cômodo com o marido e o filho, ela não tem condições financeiras de abrigá-lo. Sendo assim, a cama hospitalar acaba sendo o seu único porto seguro para descansar o corpo dia após dia.

Cândido Ferreira

A dupla formada pela curadora Ruth Helena Bertazoli de Almeida e Keila Andrade nasceu para ser detetive. Atuando com dedicação há anos ao lado de muitos guerreiros colegas no Serviço de Saúde Cândido Ferreira, em Campinas, as duas podem se orgulhar de já terem dado um destino digno para dezenas de pessoas que chegaram ali sem qualquer pista de suas identidades e paradeiro das famílias. Graças a elas, muita gente reencontrou parentes, retomou a vida e, principalmente, teve a emoção de redescobrir o seu próprio nome. "Todos têm uma história. É muito gratificante contribuir para o resgate da dignidade dessas pessoas. Quando me aposentar, vou atuar na busca por desaparecidos" , comemora Ruth.

Um exemplo é o seo Mário da Silva, com mais de 60 anos, que descobriu o dom da pintura enquanto era atendido. Um artista de mão cheia e uma criatividade que encantou os frequentadores do Centro de Convivência Cultural (CCC), lugar onde já expôs seu trabalho. Mário tem ligação com o Cândido Ferreira há 15 anos e chegou sem saber quem era, mas sabia muito bem o que queria: descobrir o seu verdadeiro eu. Mesmo depois de conseguir uma certidão tardia, ele não sossegou enquanto não encontrou informações que comprovariam o seu nome real. Isso foi conseguido com documentos obtidos em Jundiaí.

Um trabalho mais apurado, digno de investigação policial, descobriu que ele tem parentes em Rio Claro (85km de Campinas).

O reencontro, organizado em setembro do ano passado, foi uma festa regada a muito choro e emoção. Até dona Carola, uma italiana que cuidou de Mário na adolescência após a morte de sua mãe e sofreu o preconceito da vizinhança por estar "cuidando de um louco", hoje uma senhora de 90 anos, foi localizada.

Abandono

Há mais de 30 anos no Cândido Ferreira, Sebastião Alves de Oliveira nunca teve documentos. Após tirar uma certidão de nascimento tardia, a equipe do Serviço de Saúde descobriu que seu documento original estava em Morungaba. Há 30 anos, sua família simplesmente o abandonou na porta do Cândido Ferreira. Ele fala pouco, mas está feliz por se reencontrar. 

Casa de apoio ainda no papel

Uma parceria entre as secretarias de Cidadania, Assistência e Inclusão Social e de Saúde de Campinas pretende tirar do papel uma casa de apoio para esses "moradores" de hospitais da cidade. O projeto existe desde 2006, está orçado em R$ 3,5 milhões e deve ser instalado em um bairro da região Leste. Por questões internas, a Administração não divulga o local exato. Apesar disso, ainda não há um prazo para que as obras comecem e muito menos de quando as pessoas começarão a ser realmente beneficiadas.

O problema envolvendo empreendimentos imobiliários embargados durante quase um ano no Parque Jambeiro pode ser, ironicamente, a solução para o assunto. Um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) firmado entre o Ministério Público (MP), na pessoa do promotor Valcir Kobori, e a construtora MRV determina que a empresa construa a casa como forma de acertar questões que ficaram pendentes com o Município no caso do Jambeiro e outros pontos da cidade.

Questionada sobre o compromisso com a Justiça, a empresa encaminhou uma nota oficial. "A MRV Engenharia irá cumprir, como sempre o fez, com as obrigações assumidas na assinatura do Termo de Ajustamento de Conduta com o Ministério Público e a Prefeitura de Campinas em janeiro de 2012 e aguarda que as condições para a construção da casa-abrigo sejam disponibilizadas" , informa, sem detalhar que condições para começar a trabalhar seriam essas.

A assessoria da Prefeitura detalha que essa casa de apoio receberá, no máximo, 30 pessoas e que não se trata de uma instituição hospitalar ou de longa permanência, mas um espaço para dar amparo às pessoas que procuram um local para morar após as internações. O foco do trabalho será na inserção social. O valor orçado compõe a construção dos cômodos e todo o seu aparelhamento. Pelos corredores do Complexo Hospitalar Ouro Verde, por exemplo, alguns pacientes esperam que a promessa seja cumprida.

PONTO DE VISTA

Elcio Alves é repórter-fotográfico do Grupo RAC

Estou habituado a frequentar hospitais em busca de imagens para ilustrar reportagens. Já convivi com centenas de personagens e suas histórias: algumas de alegria, outras de sofrimento. Um fato me chamou a atenção quando fui ao hospital Ouro Verde fotografar um de seus pacientes para a série ‘Sem Identidade’. Ao me aproximar da cama de seo Maurício, que está internado há quase seis meses, ele cobriu o rosto com a mão esquerda e começou a chorar. Perguntei se estava com dor e a resposta foi: "É emoção!"

Quero dizer, eu, um simples fotógrafo, era uma visita para ele. Ele queria conversar com alguém, ser visto, ser notado. Lembrei da última vez que meu pai ficou internado e, para que ele ficasse bonito ali naquela cama de hospital, resolvi fazer a sua barba.

Voltando ao seo Maurício, numa rápida conversa descobri que ele tem duas irmãs que se afastaram dele, não sei por qual motivo... Certamente, algum amigo ou familiar dessas duas irmãs lerão essa história. Aproveitando o momento, faço aqui um apelo e um pedido para as duas: "Façam uma visita ao seo Maurício e se possível o tirem de lá. Ele merece!

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