PERFIL

O 'japa' por ele mesmo

Depois de atuar com ícones como Alex Atala, no D.O.M., e os gêmeos Javier e Sérgio Torres, no Eñe, Flávio Miyamura se lança em voo solo

Érica Araium
17/03/2013 às 05:00.
Atualizado em 26/04/2022 às 00:44

Aos 28 anos, Flávio Miyamura, ou o “japa”, pretende mostrar a que veio em seu “novo” templo – essa é a tradução livre, do japonês para português, do nome escolhido para seu restaurante, o Miya, recém-inaugurado em São Paulo, de levada autoral e influência metade hispânica metade japonesa. Quem já associou o nome à pessoa deve ter se lembrado da figura de sorriso largo que, tempos atrás, fazia par afinado com Alex Atala no extinto programa Mesa pra Dois, do canal pago GNT. Ele também já foi sous-chef no D.O.M. e chef executivo do badalado Eñe, dos gêmeos Javier e Sérgio Torres. As referências existem e são muitas. A aventura solo, porém, acaba de começar.

“Não posso ser pretensioso e prepotente. Preciso, sim, manter os pés no chão e deixar claro o que proponho, as referências que trago. O que me dá segurança é que conseguimos, em pouco tempo, reconhecimento nesse universo gigante de restaurantes”, avalia. O menu da casa acaba de ser alterado, depois de seis meses, e reflete a expectativa do chef em renovar o repertório dos comensais.

Matérias-primas japonesas como yuzú (fruta cítrica) e furikake (tempero usado no preparo do gohan, por exemplo), latentes na memória, serviram para sofisticar e marcar criações embaladas por técnicas ocidentais. É o caso do robalo em crosta de furikake e purê de batatas, hit do Miya, e do polvo cozido em baixa temperatura servido com cascas de yuzú preparadas como uma espécie de conserva. “Não emprego técnicas orientais nem faço releitura de clássicos. Opto por produtos simples que via em casa e raramente encontro em restaurantes. Não é preciso usar trufas e outros ingredientes importados o tempo todo, nem itens óbvios”, explica. O ovo perfeito que criou também remonta às suas raízes – cozido a 62ºC, mantém a gema molinha e é servido num caldo de legumes com edamame (grão de soja verde) e bacon.

Outros pratos que denotam a expertise do chef são a vieira com purê de couve-flor e sorbet de salsão com capim-santo, o risoto de cerveja preta e cebolas caramelizadas, o fusili caseiro com mexilhões, lulas e crosta de pão, e a barriga de porco com purê de castanhas portuguesas. A carne de porco, aliás, até pouco tempo renegada por entusiastas do comer bem, virou queridinha no Eñe por conta de Miyamura – a saber, o leitão crocante com maçã segue agradando aos clientes de lá.

Detalhe que, antes de ser inaugurado, o Miya funcionou em esquema soft open e, num dia daqueles, o chef se deu conta de que Bel Coelho, Andrea Kauffman, Jefferson Rueda, Helena Rizzo, Daniel Redondo, Marie-France Henry e outros cozinheiros bacanudos provavam de suas receitas e se divertiam reunidos em torno da mesa. “Imagine que honra. Por outro lado, se eu quisesse terminar com a concorrência, aquele seria um dia perfeito”, diverte-se.

Entre hashis e tapas

“Tive bastante sorte de passar pelos melhores restaurantes, de mandar currículo e ser aceito. Mas não posso me esquecer do Shin Zushi, onde comecei e aprendi todas as técnicas da culinária japonesa”, diz o chef, referindo-se ao restaurante fundado em 1981 pelo japonês Shinji Mizumoto e que, desde a morte dele, é gerido pelo filho, Ken Mizumoto. 

A casa é, majoritariamente, frequentada por japoneses, o menu é premiado e há uma espécie de ritual constante a ser acatado. De lá, Miyamura passou pela casa do exigente sushiman Jun Sakamoto e, por conta dessas duas experiências, garante que sabe servir como se deve, além de limpar e preparar pescados à perfeição. “Fui preparado em meio aos rituais coordenados de sushi e sashimi, mas queria conhecer outra rotina”, observa.

Foi nessa época que entrou no D.O.M. – e pela porta da cozinha quente. A maneira de trabalhar da brigada, o mise-en-scène era completamente outro, algo que agradou o cozinheiro. “Aquela loucura organizada da cozinha minúscula, os pratos sendo marchados numa velocidade incrível, a pressão que não permite erro. Era aquilo que queria”, conta. Acabou trabalhando com um dos melhores chefs do mundo e, ao longo de dois anos, atuou como sous-chef da casa. “Além de tudo que vivi na cozinha, aprendi sobre estética de pratos, a dar aulas e até participar de programas de TV”, lembra Miyamura, mirando a temporada à frente do Mesa pra Dois.

Ocorre que ele sabia que se não focasse um estágio no Exterior ou uma passagem pela cozinha de um bamba de “fora”, perderia algumas oportunidades. Pediu as contas a Atala. Durante o aviso prévio, num dia de visitas especiais, os gêmeos catalães Sérgio e Javier Torres pintaram na área e fitaram o moço. “Eles estavam com ideia de abrir um restaurante aqui e iam usar a cozinha do D.O.M. para preparar um menu degustação inicial que seria servido a jornalistas, críticos etc. Dei todo o suporte e fui convidado para ser o sous-chef do restaurante”.

A imersão na proposta do Eñe foi tão grande que ele até preparou um jantar na casa dos gêmeos para Ferran Adrià, com tucupi e outros ingredientes brasileiros. Depois, viria a ser declarado chef executivo das casas de São Paulo e do Rio de Janeiro.

Entre idas à Espanha, pausa para coordenar a edição brasileira do Millesime, encontro gastronômico que reúne chefs, gourmets e executivos de grandes marcas criado lá e reproduzido aqui. “Por essas e por outras oportunidades, tenho que reconhecer os quatro anos em que exerci a posição de chef, em que entendi que um cozinheiro de verdade também tem de lidar com a parte financeira do restaurante e, infelizmente, tirar a barriga do fogão para assumir novas responsabilidades”, pondera.

Universo gastronômico

Miyamura pondera, como já fizeram outros tantos cozinheiros expoentes, que a gastronomia brasileira está na moda e acredita no potencial de nossos produtos e regionalismos. Arrisca-se a dizer que Atala deve, finalmente, sagrar-se “o melhor do mundo” em abril, quando a revista britânica Restaurant anuncia seus “50 mais”. “Também acho que a cozinha oriental, sobretudo a de países como Japão e China, vai voltar bem forte. A culinária do Peru tem evoluído muito e, na França, os profissionais de pâtisserie estão bastante atentos às referências japonesas. O próprio Adrià está trabalhando, na Espanha, no projeto de um restaurante que combina referências japonesas e espanholas”, observa. Qualquer semelhança é mera coincidência. Ou tendência? n

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