iG - Fabiana Bonilha (Cedoc/RAC)
Já é muito clara e amplamente difundida a ideia de que o mundo é predominantemente visual, e que, por sê-lo, não permite aos cegos o acesso a grande parte das informações nele disponíveis. Há, ao nosso redor, inúmeros elementos identificados estritamente pela visão, tais como: imagens, fotografias, luzes, cores, espelhos, desenhos, entre muitos outros. É óbvio que o acesso por parte dos cegos a esses elementos é inevitavelmente restrito, e depende de algumas adequações que os tornem inteligíveis.
Entretanto, tenho atualmente feito a mim mesma uma pergunta, que, aliás, tem ficado cada vez mais presente em meus pensamentos: Por que será que as pessoas que enxergam tornam visual até mesmo aquilo que não é visual?
Para eles, todas as coisas, mesmo aquelas que podem ser percebidas por meio de outros sentidos, dependem de um correlato a ser depreendido pela visão. Trata-se do que poderíamos chamar de "visuocentrismo"! Uma forma de perceber o mundo em que praticamente só é válido o que pode ser visto.
Admira-me ver, por exemplo, que até a música, uma arte que é bonita por ser abstrata e sonora, também tenha sido vítima dessa tendência.
Os alunos de música, familiarizados com o ensino de harmonia, podem facilmente descrever como acontece uma aula dessa disciplina. Geralmente, o professor põe na lousa ou em um data showtrechos ilustrativos de certas obras representadas em partituras, e faz uma análise das passagens harmônicas, quase como se estivesse fazendo uma análise gráfica! Ninguém aprende, via de regra, a ouvir as cadências, a perceber com o corpo seus movimentos, a tatear suas cores e a sentir a expressividade de cada função tonal. Tudo é gráfico e submetido ao império da visão.
Na mesma perspectiva, a maioria das campanhas publicitárias trabalha com elementos predominantemente visuais, e e em alguns casos apenas a adoção desses elementos caracteriza uma boa propaganda. Também no meio acadêmico, a aceitação de um texto só é possível se ele for diagramado e formatado segundo padrões esteticamente compreensíveis e agradáveis aos olhos.
Vivi recentemente uma situação que é mais um exemplo de base visuocêntrica. Outro dia, eu precisava entender um conteúdo que provinha da matemática e para isso, baixei uma vídeo-aula da Internet, enviada a mim por um amigo. No e-mail que continha o vídeo, meu amigo me alertou para que eu assistisse à aula preferencialmente com a ajuda de alguém, pois, segundo ele, a compreensão dos gráficos era essencial para assimilar o conteúdo. Desconfiei da recomendação "visuocêntrica" e fui assistir ao vídeo desacompanhada.
Era fato que a todo momento, o professor, igualmente "visuocêntrico", mencionava os tais gráficos, e quando estes lhe pareciam demasiadamente complicados, ele desenhava outro gráfico para explicar cada diagrama! Ignorando esta parte ilustrativa, eu me pus a prestar atenção nos conceitos, e consegui, passo a passo, formar na minha mente a ideia principal do conteúdo que eu desejava assimilar. Corrijam-me os professores de Matemática, mas, pelo que sei, ela é uma ciência conceitual, cujos teoremas, equações e demais enunciados lógicos são depreendidos pela mente, e não pela visão. Para que servem então tantos gráficos, diagramas, desenhos, se as correlações são estritamente mentais?
Claro que nós, cegos, também temos o hábito de visualizar.
Mas nesse caso, visualizar tem um significado muito mais amplo, e pode englobar vários sentidos ou mesmo uma combinação entre eles.
Quando me ponho a fazer essas reflexões, fico pensando no sentido do termo deficiência visual. Para os que enxergam, ser visualmente deficiente significa não ver com os olhos, e, portanto, ter uma visão restrita.
Mas talvez a deficiência visual esteja de fato no visuocentrismo! Se mudarmos o foco, colocando a deficiência no lugar certo, poderemos pensar, logo de início, em um sistema de ensino diferente, mais completo e mais amplo, e, por conseguinte, mais inclusivo. Certamente estas mudanças darão trabalho, porque implica mudar todo um referencial perceptivo há muito consolidado. Entretanto, todos serão beneficiados e se tornarão menos deficientes. Que tal pensarmos mais sobre isso?
*Fabiana Bonilha, Doutora em Música pela UNICAMP, psicóloga, é cega congênita, e escreve semanalmente no E-Braille. E-mail: [email protected]