RODRIGO DE MORAES

O fuzil e a mariposa

Rodrigo de Moraes
06/02/2013 às 05:00.
Atualizado em 26/04/2022 às 05:36

“Vim buscar meus dentes”. Muitos meses depois de ter olhado a morte no fundo dos olhos, ela estava de volta ao front. Seus colegas jornalistas, companheiros de cobertura da Guerra da Bósnia em Sarajevo, mal podiam acreditar no que viam.Dois anos antes, em 23 de julho de 1992, Margaret Moth (1951-2010), uma cinegrafista neozelandesa a serviço da CNN, se dirigia com dois colegas ao aeroporto da cidade para uma reportagem. Era um trajeto que os correspondentes descreviam, sardonicamente, como “um dos melhores laxantes que a humanidade conhece”, porque era feito ao longo da principal via da cidade, uma extensa avenida, reta e plana, vigiada de maneira implacável pelos franco-atiradores sérvios.A corrida era feita, claro, a toda velocidade para dificultar o trabalho dos artilheiros. Mesmo assim, a van em que a equipe viajava foi atingida. A bala, disparada com macabra precisão de uma centena de metros de distância, acertou o rosto de Margaret em cheio, esfacelando-o. O ferimento era hediondo — o projétil lhe arrancou os dentes e partes da mandíbula e da língua — mas ela teve fibra o suficiente para manter a consciência. “Eu sabia que, se desmaiasse, pararia de respirar e morreria”, contaria depois.Enquanto era levada para o hospital para receber os primeiros-socorros, as primeiras notícias chegavam: o estado de Margaret era desesperador, e os médicos estimavam que eram mínimas as chances de ela se safar. Contrariando as expectativas, porém, ela sobreviveu e foi levada os EUA para tratamento. Foi submetida a um sem número de cirurgias para a reconstrução do rosto. Tempos depois, câmera nos ombros, lá estava ela, de volta a Sarajevo, fazendo piada sobre os dentes que perdera pelo caminho. O espanto daqueles que a viram regressar à frente de batalha era compreensível, mas a ausência de autocomiseração e a disposição meio insana de voltar ao lugar onde quase perdera a vida (e onde voltaria a colocá-la em risco) eram coerentes com a mulher singular com quem correspondentes estrangeiros como Christiane Amanpour e Matthew Chance conviveram durante o conflito dos Bálcãs.Margaret parecia uma mistura de roqueira gótica com uma paramilitar. Cabelos negros e um tanto desgrenhados, os olhos muito azuis marcados com grossas camadas de delineador, trajava sempre preto, com calças militares e botas que ela não tirava nem para dormir. E era intrépida — para dizer o mínimo: certa vez, estava cobrindo um protesto na Geórgia no começo dos anos 90 quando uma milícia abriu fogo contra a multidão. Todos buscaram abrigo atrás dos carros, mas ela se postou no meio do tiroteio, atrás de imagens exclusivas... De outra feita, filmou um soldado israelense que, a poucos metros de distância, apontou a arma em sua direção e disparou (se foi um tiro de advertência, passou raspando). A câmera de Margaret nem tremeu. Parecia seguir a máxima de Frank Capra, célebre fotógrafo de guerra que dizia: “Se a imagem não está boa, você não está perto o bastante” — frase que, aliás, abre o documentário, apropriadamente intitulado de Fearless (“destemida”) que a CNN levou ao ar em 2009 em homenagem à cinegrafista.Destemida, sim, mas Margaret era, antes de tudo, uma figura independente — e amante da adrenalina. Renegou seu sobrenome de batismo, Wilson, por considerar que não era justo uma mulher não ter direito a um nome próprio. Escolheu “Moth” (mariposa) em referência justamente um modelo de avião do qual costumava pular de paraquedas na Nova Zelândia.Diagnosticada com câncer de cólon em 2007, apontou a óbvia ironia de definhar num leito depois de tudo que passou, mas considerou: “Um bilionário não conseguiria nunca pagar para viver as coisas que eu vivi.” Margaret Moth morreu aos 59 anos em uma clínica em Minnesota, Estados Unidos. Ficou a imagem de uma mulher maior que a vida, e também a de uma mariposa que pousa, frágil e desafiadora, no cano de um fuzil.

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