RODRIGO DE MORAES

O fim

Rodrigo de Moraes
rodrigo@rac.com.br
29/04/2015 às 05:00.
Atualizado em 23/04/2022 às 15:11

Pensando bem, minha infância foi repleta de medos, talvez até mais do que o normal para uma criança. Digo isso porque, somados aos temores incutidos por adultos inábeis — como, no meu caso, a cobra gigante que habitava o quintal de minha avó e devorava criancinhas que nele ousassem se aventurar nas horas escaldantes do Verão — ou nascidos da fantasia — Vilma, uma empregada virada em vampira que se avançava sobre mim em um pesadelo recorrente —, havia os medos de gente grande. Em um aparelho de TV Zenith, preto e branco e com um seletor de canais rotativo, eu assistia a programas e filmes que me faziam mal. O mundo dali a umas décadas iria acabar, dizia Leonard Nimoy, sim, o Sr. Spock, no pseudocientífico 'In Search of'.., programa que especulava em tom histriônico sobre “mistérios” como o Triângulo das Bermudas e Atlântida. Em breve, dizia Nimoy (e eu via com curiosidade que ele não tinha orelhas pontudas), os planetas do Sistema Solar irão se alinhar, e a somatória de seus campos gravitacionais provocará um terremoto de proporções interplanetárias. Em outro episódio, ele alertava para a grande invasão de abelhas africanas que iria assolar o continente americano, também dali em breve (coitadas das abelhas, estão sumindo). Eu entrava em pânico a cada programa e ia sofrer quieto, como se o fato de eu comentar algo fosse antecipar as catástrofes que pairavam sobre nossas cabeças. E como sofri. Havia o medo de uma guerra nuclear. Nós, debaixo do Equador, ainda que não atingidos diretamente pelas explosões, iríamos sufocar e perecer lentamente sob uma gigantesca nuvem de radiação após União Soviética e Estados Unidos se aniquilarem mutuamente. O noticiário falava no “equilíbrio do terror”: os antagonistas, cientes de que seus arsenais atômicos eram capazes de destruir o mundo seguidas vezes, mantinham uma espécie de acordo tácito de não levar as hostilidades às últimas consequências. Mas era um equilíbrio delicado, e havia a paranoia, e havia sistemas de defesa de bilhões de dólares que às vezes falhavam: lembro de um recorte de jornal que, como tarefa de casa, levei para a escola: falava sobre um alarme falso no comando central dos Estados Unidos que quase deu início ao fim. Segundo a história, um técnico rodou por engano um programa que simulava um ataque soviético, dando início a uma correria que incluiu lançar o “doomsday plane”, o “avião do juízo final”, um 747 adaptado para abrigar o alto escalão do governo dos Estados Unidos. Do alto, os bambambãs da América, a salvo das chamas que consumiriam tudo e todos, comandariam o contra-ataque. Engano desfeito, tudo voltou à tensão de sempre. Uma tensão que alimentava o imaginário com pesadelos como o relatado em 'O Dia Seguinte', filme de 1983 que causou comoção na época ao narrar com realismo os efeitos de uma hecatombe nuclear em uma cidadezinha no coração dos Estados Unidos. Tudo vira cinzas, e quem sobrevive vai aos poucos sendo consumido pela radiação (como a mocinha, grávida do namorado, se esvaindo em sangue, a cabeleira reduzida a poucas mechas). Foi mais ou menos nessa época que vivi meu grande momento de pânico. Morávamos perto da área militar, no Jardim Chapadão, e a movimentação do aparato do Exército era rotineira. Um dia, porém, nas primeiras horas da manhã, fui despertado por um tremor. A casa, ainda na penumbra, sacudia sob efeito de uma movimentação ensurdecedora que vinha da rua, como mil cavalos galopando. Todos haviam pulado da cama e, zonzos de sono, tentavam entender o que se passava. Meu pai abriu a porta da frente, e deparamos com um pelotão de blindados virando a esquina de casa a toda velocidade. “O que é isso?!”, indaguei, com uma voz que o medo reduzira a um fio. “Talvez uma guerra...”, respondeu meu pai, tão atônito quanto eu. A palavra “guerra” teve em mim o mesmo efeito de uma bomba atômica. Era chegado o fim que eu tanto temia. Mas subitamente fui arrancado do meu estupor quando meu pai, ao ver que um dos veículos do pelotão estava prestes a invadir a calçada após uma curva mal-sucedida, me puxou com toda a força. O blindado, após raspar a sarjeta, se aprumou e seguiu adiante, zunindo e roncando como os outros. Momentos depois, tudo se aquietou. Não havia guerra, era só uma manobra militar (ou uma demonstração de força: aqueles eram tempos pré-redemocratização); tampouco o mundo acabou em chamas e radiação. Hoje, os holocaustos que nos acenam são diferentes, mas não dou lá muita bola para eles. Tenho mais com que me preocupar.

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