Volto ao projeto Rondon. Temo incorrer em erro ou ser injusto, mas respeitadas a experiência dos envolvidos e o tempo de atuação, creio que nossa atividade foi semelhante a que os médicos cubanos e outros estrangeiros desempenharão no projeto do atual governo. Embora somente permanecêssemos por uma semana em cada cidade, nem com o nosso noviciado tínhamos condições de exercer a medicina que aprendêramos nos ambulatórios e enfermarias do Hospital das Clinicas. Creio, no entanto, que colaboramos com as comunidades que visitamos. Mas não é meu objetivo abordar o ato que resultou na importação de médicos não habilitados pelos nossos órgãos especializados, procedimento que os médicos brasileiros são submetidos se migrarem para outros Países.Imagine um grupo de jovens estudantes de medicina, odontologia, farmácia, agronomia e direito trabalhando de repente em um grupo com disciplina militar. Um capitão (Santana) comandava a “tropa” que contava ainda, com um oficial cozinheiro, um sargento especialista em comunicação, dois outros oficiais organizando a logística e alguns jovens, que faziam o serviço militar, cuidando do trabalho mais pesado. Essa comitiva, que percorreu mais de quinhentos quilômetros, era transportada por um caminhão de viveres, camas, o sistema de comunicação e três jipes duros e desconfortáveis, mas fortes e resistentes para as estradas que percorremos com muitos buracos, além de pequenos riachos que eram atravessados com segurança, apesar do medo. Nesta equipe depois de alguns dias de muita seriedade e distanciamento começaram as brincadeiras. Um dos alvos preferidos era o sargento responsável pela comunicação. De origem germânica, tinha a missão de entrar em contato pelo radio com a base assim que chegávamos a um “lugarejo”. A base era o quartel de Cáceres. Não existiam em 1969 celulares, tabletes, Iphones, Ipads e outros smart-ais tão rápidos e eficientes como os de hoje. O sargento chegava ao nosso lugar de trabalho e imediatamente procurava um bambu ou uma haste comprida onde instalava uma antena e buscava a frequência de radio para comunicar-se com o quartel em Cáceres. Esse contato era fundamental para a segurança do nosso grupo. A brincadeira no grupo era apostar quanto tempo ele demoraria a fazer esse contato. Fazíamos apostas e o tempo para ele conseguir essa comunicação com a base girava sempre em torno de minutos. Ele ganhou a maioria das apostas. Essa vitória alimentava seu orgulho, que tinha grande influencia de sua genética germânica. Outro personagem inesquecível foi o oficial cozinheiro. Tímido e introvertido exercia bem sua função preparando diariamente arroz, feijão, salada, com verdura conseguida na comunidade e carne de sol, que vinha no caminhão como parte dos víveres. Descobrimos que ele era de uma religião que não permitia beber nada que continha álcool. Desnecessário dizer que nas horas de folga nossos cantis redondos e de alumínio, como nos filmes de faroeste americano, eram abastecidos com aguardente e não com agua. A cachaça era conseguida em pequenos alambiques que encontramos até nas menores comunidades deste País. Lembro-me dos comentários que o Professor Lourenço Roselino fazia em meu tempo de ginásio sobre sua tese, defendida na década de 20, para tornar-se catedrático do Colégio do Estado. Ele dizia ter indícios que na Arca de Noé foi construído o primeiro alambique do mundo. No Mato Grosso não poderia ser diferente. Em Porto Esperidião, nosso segundo ponto de parada, nos instalamos em um bangalô do Departamento de Estradas e Rodagem (DER). Um colega do grupo descobriu que na cidade havia uma “boate”. Chamava-se “Graças a Deus”. Planejamos então visita-la, levar o oficial cozinheiro e convence-lo a, pelo menos uma vez na vida, abandonar abstinência alcoólica. Saímos à procura do local e por volta das 20h encontramos uma pequena casa, diria quase uma choupana, com uma luz vermelha, algumas mesas e animando o arrasta-pé um conjunto musical formado por sanfona, zabumba e triangulo. Era o night club de Porto Esperidião. Sorrateiramente induzimos o oficial cozinheiro a experimentar cachaça e como é obvio ele gostou e tomou o seu primeiro porre da vida. Ao final da noitada precisamos carrega-lo para a casa. Rimos muito e comemoramos o sucesso do plano. O grande problema veio no outro dia. O oficial cozinheiro não acordou. Consequência clara de sua ressaca atávica. Essa descoberta deu origem a um grande problema: quem vai fazer o almoço? Em obediência a hierarquia militar o Capitão Santana, comandante do grupo, não teve duvida e em alto e bom som ordenou: Batista, (jovem quase imberbe que servia o exercito) você faz o almoço! Saímos para o atendimento da população e ao voltarmos sentamo-nos na sala de visitas da moradia, onde havia um sofá de tecido vermelho bem surrado, e esperamos pelo almoço. Com muita fome! Eis que entra em cena o soldado Batista. Sai da cozinha e adentra na sala onde nos encontrávamos com uma bacia de alumínio. No seu interior jazia placidamente uma grande porção de algo semelhante a espaguete misturado em alguma coisa vermelha que lembrava vagamente algo feito com tomates. Minha visão não conseguiu reconhecer nem a tradicional macarronada dominical, nem sopa, quiçá um purê de batatas ou polenta. Alguém então perguntou: ”Batista o que é isso?”. Resposta: “Não faço ideia”. Mesmo assim matamos nossa fome embora até hoje, passados mais de quatro décadas, ainda tenho duvida sobre o que almocei. Quanto ao oficial cozinheiro somente acordou à tarde, em tempo de preparar o jantar.