SEM IDENTIDADE

O drama e a história dos cidadãos "invisíveis"

iG Paulista publica série especial sobre as pessoas perdidas no mundo e sem existência oficial

Fábio Gallacci
11/04/2013 às 05:09.
Atualizado em 25/04/2022 às 20:57
Conhecido como João Noel chegou ao Samim, em Campinas, em 2009 (Edu Fortes/AAN)

Conhecido como João Noel chegou ao Samim, em Campinas, em 2009 (Edu Fortes/AAN)

No dia 14 de abril de 2009, um homem surgiu na porta do Serviço de Atendimento ao Migrante, Itinerante e Mendicante (Samim), em Campinas. Não se sabe se ele chegou ali sozinho ou foi deixado por alguém. Sem documentos e apresentando problemas psiquiátricos, motores, de memória e fala, o homem foi abrigado e transformou-se em um grande mistério para todos os funcionários do local. Um raio X pedido entre diversos outros exames emergenciais no setor de Ortopedia do Hospital Dr. Mário Gatti ajudou a investigar a sua idade óssea. O resultado apontou que ele teria, na época da chegada, 66 anos. Recolher suas digitais de nada adiantou e até mesmo a polícia não conseguiu uma resposta sobre a identidade dessa pessoa que jamais ninguém procurou.

"Adotado" pelos funcionários do Samim, ele ganhou um nome: João. Por repetir muito um determinado sobrenome, a identificação informal ganhou um complemento: Noel.

Quatro anos se passaram desde então. 

Oficialmente, João não existe. A boa-vontade de servidores do Centro de Saúde do Jardim Aurélia lhe garantiu um cartão do Sistema Único de Saúde (SUS), que possibilita seu acompanhamento médico. No Samim, o senhor que hoje beira os 70 anos teve abrigo, roupas, alimentação e cuidados. Desde outubro do ano passado, ele se encontra na Casa do Idoso, ligada à Secretaria Municipal de Cidadania, Assistência e Inclusão Social.

O serviço de psicologia sempre se esforçou para desvendar algo sobre João, mas não conseguiu até o momento. Sua dificuldade mental e de fala são fortes obstáculos. Uma psicóloga chegou a utilizar uma forma alternativa — e criativa — de comunicação com a ajuda de tabela de letras para interagir com o homem, mas não houve avanço. Foi possível descobrir que ele sabe ler. Apenas isso.

"Ele balbuciava algo como Noel e Silva, mas nunca sustentava muito essas informações. Falou alguma coisa sobre um irmão, mas falava o primeiro nome e não dizia o sobrenome. Não sabia onde morava, de onde tinha vindo. Eram coisas muito soltas, desconexas. Isso não nos permitiu formalizar nenhum dado" , lembra Inês, reforçando que o homem recebeu acompanhamento constante de psiquiatra, neurologista, clínico geral, gastroenterologia, fonoaudiólogo, fisioterapeuta e nutricionista.

Na tentativa de buscar dados sobre ele e a família, a equipe do Samim fez vários levantamentos em outros órgãos oficiais. Um deles foi o 1º Distrito Policial, onde foram coletadas as suas digitais. O material, segundo Inês, foi encaminhado para a Delegacia de Pessoas Desaparecidas de São Paulo. Nenhum resultado surgiu. Os servidores ainda verificaram detalhadamente o cadastro de fotos de desaparecidos do 1ºDP e o cadastro de antecedentes criminais. Mais uma vez, nada.

"Ele precisa existir"

Em julho de 2012, Inês encaminhou um ofício ao Ministério Público (MP) contando a história de João e pedindo a autorização para o registro de uma certidão tardia, o que dá a João o direito de um documento de identidade. "Ele precisa existir, né? Se hoje ele morrer, eu não sei como vai ser enterrado. Seo Noel precisa de documentos" , pede a funcionária. "Como já tivemos outros casos em que foram feitas certidões tardias pelo Judiciário, nós esperamos que isso ocorra novamente. O promotor já nos pediu alguns dados, que nós já encaminhamos, e a solicitação está protocolada na Promotoria aguardando uma decisão do juiz para ver se vai ser liberada ou não essa certidão" , explica Inês.

Dona Teresa

"Dona" Teresa de Moraes, que apareceu pela primeira vez no albergue do Serviço de Atendimento ao Migrante, Itinerante e Mendicante (Samim), em Campinas, em 1998, só lembra do seu nome e o da mãe. Um trabalhoso levantamento em todos os cartórios de Campinas, e nos de todas as outras cidades que ela menciona em suas conversas, não mostrou pista alguma até agora. A simpática senhora insiste em dizer que veio de Minas Gerais, mas nunca diz de que município exatamente.

Mas isso não impede que Teresa viva a sua vida. Há alguns anos, mais nova e com saúde em melhores condições, costumava circular pelas ruas. Sua rotina era ficar no antigo banheiro público do Mercado Municipal fazendo crochê e mantendo o lugar limpo. Isso, sem receber nada.

Em sua mente, ela acreditava ser funcionária do Mercadão e isso lhe trazia satisfação, foi o seu compromisso diário por anos. "Para ela era uma satisfação pessoal" , diz Inês Jesus Rodrigues Cussolim, assistente social e chefe de setor do Samim.

Hoje, com 80 anos e um diagnóstico de esquizofrenia, ela deixou de sair sozinha do albergue. Teresa está prestes a ser transferida para uma residência terapêutica, que lida com pacientes com problemas mentais, da Prefeitura. Mas os passeios não pararam. Recentemente, ela foi ao salão de beleza se arrumar para conhecer, no domingo de Páscoa, a sua nova casa.

O capricho no cabelo e nas unhas foi pago pela própria Teresa. Graças ao trabalho dos funcionários do Samim, ela conseguiu uma certidão tardia, que lhe garante existir e ter seus direitos assegurados. Um desses direitos é o recebimento do Benefício de Prestação Continuada (BPC), política de assistência social do governo federal que assegura a transferência mensal de um salário mínimo ao idoso com 65 anos ou mais e à pessoa com deficiência, de qualquer idade, com impedimentos de longo prazo, de natureza física, mental, intelectual ou sensorial.

O dinheiro vai, segundo Inês, para uma poupança aberta para Teresa. Parte do dinheiro serve para comprar roupas e alimentação diferenciada para a idosa. "O dinheiro serve para as coisinhas dela. Se quiser comprar uma roupa, ela vai junto escolher. Se quiser comer algo diferente, ela pede. A gente leva, compra junto com ela, guarda todas as notinhas" , afirma a servidora. 

Uma Luta Silenciosa e Diária

O primeiro passo é sumir no mundo. Os motivos são os mais diversos: problemas familiares, brigas, angústias, vícios, doenças mentais, surtos. Pelas ruas, muitas vezes em uma cidade que não é a sua, o contato com o álcool e as drogas faz com que a pessoa perca a sua dignidade, viva à margem do que chamamos sociedade. Por fim, a perda da própria identidade. Muitos já não sabem mais quem são ou criam novas figuras para chamar de "eu" . Essa é a realidade de pessoas que a população vê pelas ruas, mas não enxerga de fato.

A coordenadora setorial de proteção social especial para a população adulta em situação de rua da Prefeitura de Campinas, Kátia Rose Gonçalves da Silva, faz parte da equipe de profissionais que luta uma batalha silenciosa e diária para mudar destinos. "Por causa do uso prolongado de drogas ou álcool, muitas pessoas ficam sem saber quem são. A rua provoca esse processo de perda e a última coisa que a pessoa perde é a sua identidade. De não saber nem de onde ela é, de resgatar seu histórico de vida" , diz.

Kátia lembra que, em dos casos, um homem que passava por surtos psicóticos precisou ser medicado por seis meses para conseguir dizer de onde tinha vindo. Ele era natural da Bahia e, durante todo o tratamento, foi chamado de ‘Rui’. Isso até lembrar de seu próprio nome: Dilton.

Esforço

"São pessoas que acabam se desarticulando da família por causa do desemprego, pelo uso de substâncias, que muitas vezes provocam a violência na família, por doenças mentais. Você também não sabe o que vem primeiro nas ruas: o uso do álcool e das drogas ou o seu aprendizado" , afirma a coordenadora setorial. As pessoas excluídas do que a gente chama de sociedade sempre existiram, desde a Antiguidade. O que temos hoje são mais pessoas que se envolvem na tentativa de resgatá-las das ruas" , comenta Kátia, ressaltando o esforço de grupos e entidades para fazer algo pelos que não têm ninguém.

"As pessoas em situação de rua, às vezes, não ficam em cidades pequenas porque todo mundo as conhece lá e acabam vindo para as maiores. O lado positivo é que cidades que antes tinham a política de simplesmente dar a passagem para o morador de rua ir embora, hoje têm casas de abrigo, grupos que trabalham na tentativa de solução do problema. Com isso, a recuperação torna-se mais fácil. Estar perto da família aumenta a possibilidade de que a pessoa seja aceita novamente por ela" , comenta a coordenadora setorial. 

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