RODRIGO DE MORAES

O diabo nas entrelinhas

31/07/2013 às 05:00.
Atualizado em 25/04/2022 às 07:08

O nome Mefistófeles sempre me despertou certo fascínio. De etimologia incerta, surgiu por volta do século 16, na literatura alemã, para designar um demônio que surge para tentar o Dr. Fausto. Há divergências quanto à origem da palavra: uns especulam que vem do grego, “aquele que não ama a luz”; outros, que surgiu do hebraico “mefitz-tofel”, expressão que agrega os nada glorificantes termos “destruidor” e “mentiroso”.De qualquer forma, a mim, Mefistófeles surge não como um ser das trevas em sua representação estereotipada, com pequenas protuberâncias a lhe assomar no crânio à guisa de chifres, cavanhaque e um olhar perscrutador a lhe completar o ar ladino. Antes, imagino-o como um sujeito mais parecido com um deus mitológico como Netuno, de longas barbas prateadas e cabeleira idem, o semblante enigmaticamente sereno a traduzir uma certeza de propósitos sedimentada por séculos e séculos.Sei, no entanto, dos objetivos que lhe atribuem: o de induzir os homens aos descaminhos da vida, ao cabo da qual, como pagamento por um punhado de glórias vãs e prazeres fugazes, terão que entregar suas almas à danação eterna. Pobres, patéticos homens.Mas o demônio, em que pese suas representações antropomórficas, está longe de constituir um ser independente, com vida e vontade próprias. Não é uma entidade que controla suas vítimas como um titireteiro a manipular suas marionetes. Ocioso dizer, mas o diabo e todo o aparato atribuído a ele são, antes, uma representação das fraquezas humanas.Simbolicamente, porém, para o folclore, para a literatura e para o imaginário popular, é uma representação perfeita para falar das paixões do homem e de suas consequências mais desastrosas e funestas.Um exemplo clássico dessa representação é O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, que recentemente ganhou uma reedição, lançada pelo selo Biblioteca Azul, da Editora Globo, que resgata o manuscrito original do escritor irlandês. A história é conhecida: o personagem-título é um jovem de extraordinária beleza que, encantado com a própria imagem ao ver seu retrato pintado, deseja fervorosamente nunca envelhecer, nunca perder a sua juventude para a passagem implacável do tempo.Sem perceber, acaba selando o que se convencionou chamar de “pacto faustiano”, em referência ao Dr. Fausto da lenda alemã, que vende a alma ao diabo em troca de benesses. Dorian não envelhece, mas o seu retrato, sim. Com o passar do tempo, cada vez mais prepotente e amoral, Dorian vê seus vícios e atos ultrajantes — que incluem um assassinato — marcarem de forma indelével o seu rosto na tela, enquanto que ele mesmo mantém o frescor e a suavidade dos traços. Arrependido, ele tenta desfazer o “feitiço”, mas é tarde demais.Aqui, a presença do “diabo” está novamente nas entrelinhas, embutida nas paixões humanas — no caso, a vaidade e a soberba. Mefistófeles, ou como quer que o chamem, não está usando Dorian para cumprir seus objetivos, esfregando as mãos de satisfação e rindo, triunfal e sardonicamente, a cada mau passo do infeliz protagonista. Antes, é como se ele, Mefisto (se me permitem a intimidade), se limitasse a observar, com a paciência que a eternidade lhe deu, mais uma alma cumprir o ciclo da própria degradação e se entregar à condenação eterna.

Assuntos Relacionados
Compartilhar
Correio Popular© Copyright 2025Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por