GASTRONOMIA

O Darwin da cozinha brasileira

Francês Laurent Suaudeau, considerado um desbravador da riqueza gastronômica do País, fala do ofício de chef e educador e adianta seus novos projetos para um futuro próximo

Érica Araium
24/06/2013 às 16:19.
Atualizado em 25/04/2022 às 11:03

Laurent Suaudeau desembarcou no Rio de Janeiro, 34 anos atrás, com status de discípulo de Paul Bocuse, a quem nunca deixou de chamar de mestre. Veio trabalhar no extinto Le Saint Honoré, restaurante do Hotel Meridién, jovem, disposto e sedento por conhecer o novo terroir, que ainda teimava em cozinhar/conjugar verbetes importados nas panelas da alta gastronomia. Conta ele que, inadvertida e incorrigivelmente, tratou de investigar o que havia nas bancas dos mercados do entorno do Meridién: mandioquinha, maracujá (la fruit de la passion), mandioca, jabuticaba, tucupi... Refez o diálogo com o menu, tornou-se chef. E logo se firmou “seta” de um movimento gastronômico focado nos ingredientes nacionais. Respeitar e revelar o potencial de um produto fresco, sazonal, local, afinal, sempre foi algo imperativo para ele, “provocador, por vezes rebelde, sobretudo quando jovem”, na própria definição; sensato, na de quem o interpretou.

Munidos de técnica e ousadia, uma leva de outros cozinheiros franceses se puseram a marchar com Suaudeau, a exemplo de Claude Troisgros, Erick Jacquin e Emmanuel Bassoleil, rumo a uma nova onda gastronômica brasuca. Alex Atala e brigada (i)limitada reconhecem que não seriam quem são sem ele. Sobre o que pensa da cozinha como terapia – sim, ele defende que a cozinha pode ser tremendamente terapêutica –, aliás, ele veio dizer, pessoalmente, a estudantes de gastronomia, gourmets e afins durante palestra na Universidade São Francisco, no campus Cambuí, no último dia 13 (Suaudeau foi convidado ainda a abrir o Festival de Chefs do restaurante Matisse, do Royal Palm Residence, e participou de degustação de queijos e vinhos no Bellini Ristorante, na última semana).

Generoso, foi muito além do tema ao estabelecer as conexões que o definem como cozinheiro. Reviu a carreira, perscrutou a ação de educar – em 2000, ele abdicou do restaurante estrelado em São Paulo para abrir sua Escola da Arte Culinária, que já formou inúmeros chefs, pela vontade de dividir conhecimento, vale lembrar – e olhou para os rumos da gastronomia brasileira, que ajudou a erigir, com visão paternalista e realista.

Foto: Érica Dezonne/AAN Suaudeau diante de uma plateia atenta reunida na USF, fazendo uma das coisas que mais gosta: compartilhando conhecimento

Teoria gastronômica aliada à prática

“Aformação técnica dos cozinheiros tem de ser encarada com seriedade, democratizada e priorizada desde muito cedo por quem escolhe essa carreira, que atualmente está elitizada, glamorizada e mais restrita ao ambiente acadêmico. Não tem nada de glamoroso em ser cozinheiro. Há, sim, muito, muito trabalho e dedicação, porque um chef não pode errar, tem que saber executar com perfeição. O cliente paga por algo que terá na hora e que acabará na hora. Então, creio que os estudantes de gastronomia têm de ter oportunidade de colocar em prática o que aprenderam na teoria em bons restaurantes e em bons hotéis, ao lado de bons chefs. É preciso que as instituições invistam em qualidade de ensino e pensem em firmar parcerias para estágio”, introduziu.

Tal bom professor, reforçou o elo entre cozinheiros lembrando aos ouvintes que um chef, de fato (e não um personagem “caracterizado” de dólmã, apenas), jamais deve deixar de aprender com sua brigada ao dividir conhecimento. Para ele, a habilidade técnica, exigida no cotidiano da quentura dos fogões, só fará sentido se o ato de cozinhar for tratado com paixão e sobriedade.

“A codificação do processo de cozinhar não deve ser tomada como uma obediência tapada a regras, mas perpassar a compreensão sobre esse processo. Por que, para que e como cozinhar são perguntas que devem ser feitas todos os dias”, vaticinou.

O lado terapêutico da cozinha

 

Graças à popularização da gastronomia, de seus insumos e gadgets, a cozinha voltou a ser encarada como centro dos encontros, coração da casa, palco para o show ao vivo da execução de uma receita entre goles de vinho. Nesse contexto de recepção informal de comensais, tréguas à adrenalina nas quais muitos chefs se incluem, inclusive ele próprio, Suaudeau avaliou que a cozinha pode ser encarada como terapia.

“Quando o cozinheiro encontra no gesto de cozinhar uma forma de aliviar o estresse, quando se sente feliz ao agradar aos outros pela transformação do alimento, quando a cozinha é percebida do ponto de vista da expressão que transcende a fronteira do indivíduo, ela é terapêutica. Ocorre que a cozinha deve ser entendida, também, como uma mensagem de paz, que tem de voltar a ser ponto de equilíbrio entre os povos. Nenhum terroir é melhor que o outro”, sustentou.

O universo gastronômico está careca de saber que ele nunca desprezou matéria-prima alguma (valorizou-as com unhas, facas e dentes) ao mesmo tempo em que sempre apregoou: comer bem não significa fartar-se de caviar e foie gras, como ocorria anos atrás, com acesso e ode aos importados. Daí ele crer que a onda em prol da sustentabilidade, ou da gastronomia sustentável, ou do movimento slow food, ao qual se afina, não pode ser uma questão de opção ao cozinheiro, mas de coerência e sobrevivência. “A estreita relação com o pescador, o agricultor e o produtor tem de ser óbvia para que se busque a otimização do ingrediente. Ao mesmo tempo, há que se manter um posicionamento de humildade perante o que o medo quer que você seja.”

De volta à cozinha como terapia, e quase no final da longa e descontraída prosa, Suaudeau entregou que está prestes a dar uma nova guinada na carreira. Ao mesmo tempo em que pretende dar continuidade ao trabalho de responsabilidade social que vem desempenhando junto a instituições como a ONG paulistana Casa do Zezinho (periodicamente, ele dá aulas de gastronomia aos participantes e ministra cursos para eles em sua Escola da Arte Culinária), ele deve assumir um projeto de recuperação de pessoas cuja saúde está debilitada.

“Uma instituição, que ainda não posso revelar qual é, me convidou para cozinhar para essas pessoas e há 90% de chances de dar certo. Talvez ser chef, no futuro, não seja estar num restaurante estrelado, num hotel, mas, simplesmente cozinhar para quem precisa de carinho. Se tudo der certo, vou estudar nutrientes e moléculas sem trégua, me aplicar e, de novo, dividir conhecimento. Desenhar outro horizonte será terapia para mim.”

Foto: Érica Dezonne/AAN Se foram os franco-brasileiros os darwinistas da evolução gastronômica brasileira? De certa forma, acredito que sim. Após 25 anos da nossa vinda, esse caminho aponta ícones nacionais

O mestre, com carinho

 

Minutos antes da palestra na USF Cambuí, o chef Laurent Suaudeau concedeu descontraída entrevista à Metrópole – parte dela serviu para temperar esta reportagem. No centro da pauta, a avaliação que o próprio chef fazia da contribuição que deu à evolução da gastronomia brasileira. A seguir, outros trechos da prosa.

O senhor consegue dimensionar a contribuição sua e de outros chefs franceses à gastronomia brasileira, que evoluiu na medida da valorização dos ingredientes nacionais?

A gente tem de olhar isso com muito fair-play. O que nos trouxe para cá foi uma cultura que foca: “valorize o que é seu sem desprezar o que é dos outros”. Se foram os franco-brasileiros os darwinistas da evolução gastronômica brasileira? De certa forma, acredito que sim. Após 25 anos da nossa vinda, esse caminho aponta ícones nacionais. Isso é extraordinário. O bom foi a continuação desse trabalho, dada por jovens chefs brasileiros como Luis Antônio Rosa (atual professor de gastronomia da USF-Campinas e com quem já trabalhou), Alberto Landgraf (Epice), Jefferson Rueda (Áttimo) e Rodrigo Oliveira (Mocotó).

Em 2000, reconhecido e premiado, o senhor abdicou de ter um restaurante para investir no ensino de gastronomia em sua Escola de Arte Culinária. Era um plano antigo?

Nasci numa família de operários. Em 1968, aos 11 anos, meu pai me levou à fábrica dele e me disse: “Se quiser ser respeitado na vida, seja o melhor no que faz”. Comecei a carreira aos 14 anos e sei o nome de todas as pessoas com quem trabalhei até hoje. Tudo isso, certamente, me toca. E eu gosto de ensinar. Quando Bocuse me chamou para cá, eu já tinha essa particularidade dentro da equipe de cozinheiros. Eu era o receptor, acolhia os novatos no período de adaptação. Hoje, numa autoavaliação profissional, reconheço que minha paixão sempre foi ensinar. E, se em 2000, eu decidi ter meu centro de formação, foi uma maneira de agradecer a quem me ofereceu conhecimento. E o Brasil, sem dúvida, me ofereceu muito. Perspectiva profissional, família, amigos e convicções.

Sim, o senhor é defensor ferrenho da profissionalização dos cozinheiros, sobretudo os de origem humilde. Aposta na formação técnica, e não universitária, aliada à prática. Tanto que se envolve em projetos de responsabilidade social e, em 2012, planejava abrir uma escola de cunho social em Paulínia. Esse projeto adormeceu?

Eu não tive mais notícias desse possível parceiro. Avisei, inclusive, que estaria em Campinas por esses dias e nenhum retorno. Para ser sincero, como sempre fui, fico com receio de que seja alguém, com interesses escusos, talvez ligado ao governo, seja ele qual for. Então, não dá para confiar. Quando você é um cara que gosta de ensinar, grande parte do seu caráter é idealista. É pena que a maioria das pessoas tenha deixado de ser idealista há muito tempo. Se não for em Paulínia, a escola será em outro lugar em que eu possa multiplicar conhecimento.

Em 1994, já vivendo em São Paulo, o senhor fundou a Associação Brasileira de Alta Gastronomia (Abaga). No ano passado, a instituição foi extinta para dar lugar à Associação dos Profissionais de Cozinha do Brasil (APC Brasil). O que muda conceitualmente?

A intenção não é transformar a instituição, na qual serei conselheiro, e que deve ter o Alex Atala na presidência, num lugar corporativo, mas num espaço menos elitista e em que se discutam ações coletivas para melhorar o mercado da gastronomia, a cadeia produtiva, a qualidade das matérias-primas, as leis, a economia, a sociedade, o Brasil.

O senhor se diz contestador por definição e não se arrepende de dizer o que pensa, depois de muito pensar. Arrependeu-se em algum momento?

Não. Tenho essa relação humanista, educacional bastante forte e, por ser muito crítico, sei que os meus posicionamentos nem sempre são agradáveis. Aqueles que falam que no Brasil não se respeita nada devem lembrar que isso só acontece quando não se dá ao respeito. E se tem um legado que vou ter para sempre neste País é o respeito que conquistei por consequência do meu trabalho. Isso é um tremendo contraponto, a maior vitória em todo o meu percurso. É extraordinário.

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