ZEZA AMARAL

O choro da vida

14/11/2013 às 05:00.
Atualizado em 24/04/2022 às 22:19

Na noite anterior, descobriu que estava totalmente perdido. Insone e a sós com as suas culpas ancestrais. O sono tardava. Brotaram dos seus olhos duas pesadas lágrimas quentes que buscaram abrigo nos fios labirínticos de sua velha barba, e que desceram, peito adentro. Não houve soluço. Apenas duas lágrimas. Quentes. E dois pequenos caminhos mornos. Um choro silente para não espantar ainda mais o sono que tardava e ensopava o lençol de suores de uma noite silenciosa e ausente de memória cristã, nem mesmo de Deus e seu Filho. Memória de homem. Não foi choro de mãe que se debruça à cabeceira do filho que arde em febre e delira dores que ela bem gostaria de tirar com as mãos, orando e pedindo clemência a quem não pode pedir perdão pelos seus pecados, visto que foram todos conscientes e que ainda carecem de clemência. Não foi choro de companheira que a fotografia do seu homem ausente ainda provoca.Nem choro de mãe que abraça com os olhos o corpo do filho prisioneiro, de olhos baços, atrás de uma grade de prisão. Não foi choro de criança que perdeu o cachorro atropelado por um caminhão de mudança, ali por perto da sua casa. Não foi choro desesperado de homens que voltaram para suas casas apenas com os calos das mãos e o cheiro de suor de longas caminhadas, todos desempregados, sem nem mesmo o bafo de uma pinga barata, que nem isso lhes dá prazer. Não foi choro de viúva que perde a casa e ganha as ruas da vida, que a vida que levava também não valia nada, marido bandido que bem sabia ter o destino nas próprias mãos, mas que a isso não dava importância. Não foi choro de derrotados. Nem de vencidos. Apenas dos que empatam o tempo da vida da qual desistiram por desesperança covarde e sem sentido, e que acusam Deus pelos seus infortúnios diários. Não foi choro de gente solitária que anda pelos botequins ou pelos cômodos da casa à procura de uma razão qualquer para seguir na vida. Não foi, sequer, um choro de saudade ou de alegria. Nem mesmo de fé ou descrença. Foi um choro apenas de atar as mãos em prece; um choro fermentado nas entranhas; um choro besta que não lhe servia para nada, e que só atestava a impotência dos sentidos dos fatos e das suas angústias. Um silencioso choro de lágrimas pesadas e quentes, e agora perdidas nos pelos do peito. E veio a manhã. Em vão procurou as duas lágrimas vertidas. Nos jornais, as fotos estampavam a imagem de mais um menino assassinado, mais uma vítima de uma violência absurda que a civilização trava contra a barbárie das drogas, dos que se acham acima da dor e do prazer. Mulheres, crianças e velhos se rastejam pelas magras costelas da miséria do mundo, enquanto homens das nações unidas desfilam seus sorrisos e ternos em salas atapetadas e bem temperadas por potentes condicionadores de ar. Quanta elegância perdida, quanto ainda devemos aprender? Os olhos do homem estão muito claros, agora. E assim se sentiu irremediavelmente perdido na manhã que se escorreria pegajosa pelo resto do dia. E eu me peguei nos meus ombros, acariciei-me em meus pelos brancos e fiquei cantando cantigas de ninar, lembrando de calores maternos e fraternos. E acreditei que em algum lugar da esperança ainda exista um perdão pela vida humana. E fui trabalhar. Bom dia.

Assuntos Relacionados
Compartilhar
Correio Popular© Copyright 2025Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por