ig-cecílio (AAN)
O pavor de todo jornalista e escritor sempre foi o chamado “branco”. Era a página em branco na máquina de escrever. É, agora, o branco da tela do computador. Isso sempre significou falta de ideias, de motivação, de assunto. Vive-se um vazio cerebral, como se os neurônios estivessem dormindo. No entanto, o coração pulsa mais forte e o espírito como que entra em agonia. O “branco” dá desespero. Não sei absolutamente nada do que vou escrever logo em seguida. Fiquei cerca de meia-hora olhando para a tela do computador, aguardando uma luzinha. Substituí Mozart por Bach, na esperança de fiapos de céu me iluminarem. A confusão foi ainda maior pois o “branco” se tornou ainda mais branco. Alvejou. Mas a situação era outra: não era o “branco” da falta de assuntos. Era o do excesso, de tantas motivações que eu não sabia — e ainda não sei — qual delas escolher. Do meu canto de escrever, vejo, pela janela estreita, um belo pedaço de paisagem, de céu, de árvores floridas. Uma delas — cujo nome não sei — é um esplendor de flores amarelas. Parece querer disputar com o flamboyant todo avermelhado. Vejo o enfrentamento diário entre o sabiá desesperado para manter o ninho dos filhotes intocado, receoso da algazarra dos saguis. O sabiá assusta os macaquinhos que me esperam para mais bananas, os gulosos insaciáveis. Mas não consigo escrever, no turbilhão de pensamentos. E o “foie gras”? Nem sei o que é isso, nunca vi, nunca comi. Aprendi ser fígado de ganso e eu detesto fígado de qualquer ave ou animal. Por que essa confusão toda, movimento mundial para poupar os pobres gansos de uma alimentação forçada? Será que o mundo enlouqueceu ou não tem mais nada a fazer? Pois o fígado do boi, da vaca, da galinha estão aí disponíveis, sem que ninguém se incomode com eles. E o assalto para defender os cães que serviam a pesquisas científicas? Coitadinhos, né? Mas acho mais coitados os miseráveis que estão dormindo nas ruas, alguns deles incendiados por bárbaros, sem que ninguém lhes dê importância. Um ganso superalimentado preocupa mais do que uma criança morrendo de fome? Pensei nisso, mas, à cabeça, me veio a questão da tal mobilidade urbana que, até pouco tempo, tinha outro nome: trânsito infernal, caótico. Há residências familiares com mais carros do que gente. Um amigo meu — há pouco tempo — gabava-se de ter comprado, apenas para si mesmo, outro automóvel. Agora, tem três. E cada membro da família tem o seu. Um outro amigo, curioso, lhe perguntou: “Por que três automóveis se tem apenas um bumbum?” O dono dos carros não soube explicar. Mas nem percebeu, ainda, que — dentro em pouco — estaremos marcando encontros no próprio trânsito, para conversar um com o outro, dentro dos carros parados. Será, então, a internet presencial. Por que não? E isso me leva a pensar na visão profética do velho Marx, antes tão odiado como se tivesse culpa das burradas e crueldades do comunismo de Stalin, mas, agora, quase reabilitado. Marx advertira que o capitalismo selvagem viveria de uma estratégia com táticas programadas: sugaria por inteiro um mercado e, quando este se exaurisse, tomaria posse de outros. Agora, as montadoras estão de olho na sei lá se indefesa ou preguiçosa América Latina. Até minha antes tão doce terra já está com poderosa montadora de automóveis e, portanto, cada vez mais infestada deles. E muita gente — em especial jovens mulheres de executivos novos ricos — rejubila-se com seus reluzentes carrões. Todos eles parados no trânsito. E sem lugares para estacionar. Por falar nisso, há outra questão que não entendo: se as leis permitem — até mesmo em autoestradas — velocidade máxima de 120km/h, por que as montadoras lançam ao tal mercado carros com potência para 300km/h? Até o meu carrinho pode chegar a 220km/h. E, nas ruas da cidade, pode-se trafegar apenas entre 40 e 70km/h. Não entendo. Da mesma forma como minha parca inteligência não compreende que se fabriquem produtos — como o cigarro, por exemplo — “que fazem mal à saúde”. Ora, se fazem mal, por que permitir sua produção? Outra coisa e peço que me ajudem na barafunda que me atordoa: há alguma lógica em fábricas de cerveja patrocinarem eventos esportivos? Atletas movidos a álcool? Deve ser natural, pois, hipocritamente, advertem: “beba com moderação”. Ou “se dirigir, não beba”. E armas de fogo, hein? Crianças matando crianças, familiares matando familiares? E os Estados Unidos, hein? Gastaram dois trilhões de dólares para aquela guerra estúpida e malandra no Iraque e sabemos haver mais de um bilhão de pessoas morrendo de fome no mundo. Bem... Paro por aqui, desculpando-me pelo “branco” neurotizante do escrevinhador.