ANDRÉ FERNANDES

O artigo que não foi escrito

André Fernandes
17/07/2013 às 05:00.
Atualizado em 25/04/2022 às 08:39

Numa dessas manhãs de julho, pedalava ao redor da Lagoa ouvindo Bono Vox e seus falsetes. O vento cortava a alma, porque o sol ainda não tinha levantado, mas a disposição de muitos já estava de pé, pondo-se a marchar na minha contramão de direção. Gosto muito dessa pedalada matinal: alia esforço físico com distanciamento da realidade e é vivida mais intensamente nos meses em que não há aulas, porque, nesse horário do dia, invariavelmente estou levando os filhos para a escola.

Nesses momentos, a reflexão costuma fazer-me companhia. E é uma reflexão tirada a partir da observação dos rostos que cruzam com o meu ao longo das voltas que vão sendo vencidas até que o cansaço fale mais alto. Nesses rostos anônimos, sempre vejo inúmeras faces: de alegria, tristeza, preocupação, tédio; ora empinadas, ora cabisbaixas; algumas plugadas ao som da música, outras atentas ao som do silêncio; e outras em ritmo de diálogo ao lado de outras faces.

Contudo, deixarei esses argumentos para outro artigo. Naquela manhã, chamou-me atenção um grupo de senhoras que caminhava acompanhado de supostos netos, recém-egressos na juventude, porque nesse horário do dia, os netos, de férias, costumam estar imóveis e acompanhados de travesseiros e cobertores. Olhando para aquela cena, lembrei-me que os jovens são sempre capazes de nos surpreender. Para o bem ou para o mal: vai depender do grau de enamoramento de seu coração.

Hoje, é preciso estar atento para os anseios e as perspectivas que a realidade descortina para a juventude, porque é daí que devemos apontar um modelo ético de ser humano e de sociedade coerente com nossa natureza. Não estou aqui a repetir o chavão de uma certa mentalidade decrépita, tanto mais decrépita, em regra, quanto mais longe se situa de seu passado juvenil e que fica enfatizando as limitações e os fracassos da cultura atual.

Antes disso, é preciso abrir espaços de interlocução com os jovens, participar de seus ambientes, dialogar com suas representações, compreender suas expectativas, mas, sobretudo, dar rumo para que eles conduzam seus projetos de vida. Porque, quando somos jovens, costumamos pensar nas pessoas que amamos e admiramos e que, por isso, gostaríamos de imitar.

Pode ser uma pessoa da vida quotidiana ou uma pessoa famosa. Vivemos numa cultura da celebridade e a juventude é, muitas vezes, encorajada a ter figuras do mundo dos esportes ou do espetáculo como modelos de vida. Devemos aproveitar essas ocasiões e, ao invés de dizer que esse não presta ou essa é assanhada demais, devemos submetê-los a uma pergunta crucial: quais são as qualidades que esses modelos possuem e que você gostaria de possuir em maior medida? Que espécie de pessoa realmente você gostaria de se tornar?

Ouviremos respostas nos mais diversos sentidos, mas a maioria delas passará por rios de dinheiro ou por uma alguma espécie de vanguarda espetacular numa dada atividade profissional. Ter dinheiro torna possível ser generoso e fazer o bem no mundo. Entretanto, só isso não é suficiente para tornar uma pessoa feliz. Ser grandemente dotado numa profissão é algo positivo. Contudo, poderá tornar-nos famosos, o que não é sinônimo de felicidade.

A busca da mimese de uma celebridade é, no fundo, a busca da felicidade que o jovem anseia tão intensamente nessa fase da vida. No entanto, uma das grandes tragédias deste mundo é que muitos a procuram, mas não conseguem encontrá-la, pois a buscam nos lugares errados: os sucessos mundanos não satisfazem um coração enamorado, porque ele foi feito para a transcendência e a transcendência é a porta de nossa alma que abre somente para fora.

O historiador Paul Johnson, certa vez, disse que a adoração que os jovens dedicam às “celebridades” é uma corruptela da espécie de adoração que os nossos antepassados dedicavam aos santos, beatos e outros tipos de aureolados. A afirmação é tão certeira que os modernos “peregrinos” imitam os antigos na busca de uma relíquia, ressalvado o abismo axiológico particular entre umas e outras.

Recentemente, o vaso sanitário do John Lennon foi a leilão pelo lance mínimo de 9.500 libras. Ontem, um pedaço de tecido. Hoje, uma privada. Amanhã, quem sabe, a língua da Lady Gaga conservada num vidro de formol. Não sei. Só sei que, além de condições materiais decentes, devemos oferecer aos jovens modelos de imitação que os conduzam a um horizonte de vida autêntico. Quem sabe, começando por nós mesmos, através de um esforço diário de exemplo, resgatando, como dizia o cantor na minha pedalada, a beleza que existe dentro de nós. Com respeito à divergência, é o que penso.

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