ZEZA AMARAL

O alinhavo da vida

26/11/2020 às 07:33.
Atualizado em 26/03/2022 às 17:45

O pano não se come e nem se bebe. Ele apenas nos protege das intempéries e assim cumpre a sina de manter a humanidade aquecida e protegida. O pano é a melhor descoberta da humanidade. Além do fogo e da roda. O couro era difícil, pois tratava de sair da caverna para caçar um bicho, não apenas para comer mas para lhe retirar a pele, curti-lo e costurar com finas tiras de couro. E as senhoras das cavernas cuidavam de si e dos seus. Quantas agulhas não foram criadas por aqueles tempos, hein? Espinho, espinha de peixe, osso de ave, graveto de peroba, quantas agulhas e quantos alinhavos? Quem costura carrega em si memórias ancestrais de bisas e avós, a paciência do bordado, do crochê, e assim teciam suas vidas simples de lembranças, alinhavando-as à costura final de um vestido, um terno, camisa, ou mesmo à própria vida. Tudo tem de ser alinhavado na vida. O amor dedicado a alguém tem de ser bem alinhavo - caso contrário, se desarruma na emoção, fica desengonçado, e até mesmo idiota. O pedreiro também tem de saber alinhavar os tijolos, cuidando da linha do cimento e acariciando a argamassa como se fosse a pele da namorada. Tudo é sempre carinho – e bem alinhavado. Há uns trinta e poucos anos, repórter policial, fui reportar a morte acidental de um trabalhador da construção civil. A tábua do andaime quebrou e ele caiu vinte metros, atrás da betoneira – exatamente onde costumava almoçar a sua boia fria. A família veio buscar o corpo e conversei com um parente dele. Baiano, bom de pegar boi no espinheiro, trocou a profissão para ser domador do ar. E veio o nó da madeira e esporeou o ar atrás do equilíbrio. Não tinha nem vinte e cinco anos, apenas um sonho de casar e trazer a companheira para um lugar melhor. Conheci a sua namorada, mocinha de olhos negros e cabelos presos num coque. Já era uma senhora viúva. E com o destino traçado de todas elas. E assim ficou alinhavado mais um fim de paixão e sonhos de vida... O sol da tarde vai se descansando lá pelos cantos de Aguaí. Tudo está sendo bem alinhavado pela tarde. E tudo anuncia chuva mansa para adormecer as crianças e tirar o calor dos velhos. Acho que vou começar a ler o livro do Rui Castro, uma biografia da Carmem Miranda. Nem tanto pela história da cantora, mas pela elegância literária do autor. E assim farei as horas necessárias para cumprir mais um dia de saudável convivência no charmoso chalé da cunhada Márcia Iared – incansável em seu mister de proteger o patrimônio artístico, religioso e cultural (ou tudo isso junto) de Vargem Grande do Sul. A cidade é pequena, mas ela segue tratando Vargem Grande do Sul como uma grande metrópole da sua elegante memória. Marcia Iared é quase uma eterna diretora de cultura da sua cidade. E escrevo isto não apenas porque estou hospedado no seu confortável chalé. Afinal, só ando em boa companhia, como já cantou Vinícius de Moraes. A rua é tranquila e as casas, a maioria delas tem muros baixos. E todas têm um pequeno jardim, ora de gerânios, ora de rosas e margaridas. Ou tudo junto. E isso em oração natural e regado ao fim das tardes. O meu País segue em paz com suas casas ajardinadas e vastos quintais de mangueiras e abacateiros. E muitos meninos empinando pipas compradas no armazém da esquina. A beleza das crianças brincando com o vento é uma tristeza de não vê-las construído seus próprios maranhões, afinando varetas de taquara, colando a biqueira e o arco. E já faz anos que não vejo uma capucheta brincando nas mãos de um menino mais apressado e que bem sabe que o vento tem hora para chegar e partir. E assim parto de mim e vou atrás de outras palavras. E o vendaval levou as minhas ideias para bem longe da Serra da Mantiqueira e um bando de siriris resolveu me acompanhar na minha caminhada pelas ruas. Encheram-me a paciência e voltei para casa. E só espero que as andorinhas também retornem para alinhavar as minhas tardes taquarenses. Bom dia. Zeza Amaral é jornalista, escritor e músico.

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