Sociólogo e pesquisador fala dos hábitos culinários e discute as normas que restringem tradições gastronômicas genuínas
No final de 2012, o Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) sediou evento em que o tema alimentação foi discutido à luz da história, do gênero e da cultura material. O seminário internacional reuniu representantes de centros de ensino e pesquisa brasileiros e de Portugal em torno de assuntos relacionados aos saberes – e aos sabores – das práticas culinárias em diferentes épocas, do Egito Antigo à São Paulo novecentista, contemplando ainda o Brasil colonial.
Organizado pela historiadora e docente do IFCH Leila Mezan Algranti, o encontro expôs o interesse crescente das ciências humanas pela temática alimentar. Recentemente e de forma inédita em uma universidade pública paulista, o curso de graduação em História da Unicamp passou a oferecer a disciplina História da Alimentação.
A iniciativa teve como inspiração a disciplina de pós-graduação Sociologia e História da Alimentação, ministrada no IFCH por Leila e pelo sociólogo e pesquisador do instituto Carlos Alberto Dória, que também integrou uma das mesas-redondas do seminário. Metrópole conversou com Dória sobre várias questões ligadas à gastronomia, inclusive o impacto do imperialismo lusitano na culinária brasileira.
“Os escravos comem o que os senhores oferecem. É simples assim”, explica o professor sobre a imposição dos gostos gastronômicos portugueses aos escravos no Brasil. Conversamos ainda sobre as novas formas de imperialismo. “As atuais normas sanitárias, higienistas, que restringem uma culinária tradicional e seus modos de fazer, são imposição do poder político”, avalia.
Metrópole – O que os portugueses normalmente levavam em suas naus para consumir durante as longas viagens e no desembarque no Brasil?
Carlos Alberto Dória – Favas, bacalhau seco, galinhas vivas e embutidos.
E quando a provisão acabou? Como os portugueses lidaram com os alimentos aqui encontrados?
Quando a necessidade se impõe, come-se o que se tem à mão. Não se pode exercer critérios do tipo “gosto” ou “não gosto”. É preciso vencer os preconceitos, o nojo, todos os sentimentos que nos afastam do desconhecido.
Que intercâmbio gastronômico eles firmaram com os nativos?
Gastronomia não é termo que se aplique. Exige livre escolha em meio a um repertório de coisas comparadas entre si, escolhendo-se o melhor do ponto de vista do gosto.
Os portugueses, como conquistadores, impuseram aqui também o seu imperialismo culinário?
Os escravos comiam o que os senhores ofereciam. Era simples assim.
E que papel os holandeses e os africanos tiveram na construção da cozinha colonial brasileira?
A dominação holandesa é curta demais e muito localizada para elaborar qualquer coisa em termos culinários. Os escravos africanos, como disse, não elaboravam culinária, uma vez que estiveram submetidos aos senhores de engenho.
A proporção continental do Brasil, além de tantas influências, explica uma culinária tão diversificada?
Sem dúvida. A culinária, especialmente em meio às dificuldades de comunicação e de comércio, restringe-se às matérias-primas disponíveis de modo mais imediato.
É correto dizer que o Brasil não tem uma identidade nacional por causa da existência de várias cozinhas regionais?
Mesmo num país como a França, com uma centralização política forte e precoce, os regionalismos culinários permanecem e hoje são revalorizados dentro de uma perspectiva conservadora, como testemunhos da “velha França rural”. Mas há também uma leitura moderna, uma nouvelle cuisine de terroir, que valoriza de um modo diferente o passado. Com isso, quero dizer que sem diversidade não é possível estabelecer a dinâmica moderna da nação, que é um processo incessante de resignificação do que existe. Procurei mostrar num artigo recente (Beyond rice neutrality: beans as Patria, Locus and Domus in the Brazilian Culinary system, in Richard Wilk & Livia Barbosa (orgs.), Rice and Beans. A unique dish in a hundred places, NY, Berg, 2012) como um produto tão simples como o feijão, em sua diversidade biológica e de modos de fazer, permite que os cidadãos se situem na pátria, na região ou no lar. Vários produtos nos permitem esses trânsitos, mostrando que não há qualquer contradição entre identidade e diversidade.
A partir da América portuguesa, é possível traçar uma identidade única para o que chamamos de culinária tipicamente brasileira?
Há algumas constantes, é claro. Como o hábito de refogar cebola e alho antes de iniciar uma cocção.
O que comemos hoje que é fruto da mescla da culinária colonial?
Acho que essa influência é muito remota. A cozinha moderna remete pouco ao passado colonial. A menos que entendamos que a indústria do açúcar seja colonial ou que a mandioca, presente milhares de anos antes da chegada de Cabral, também deva ser chamada assim.
A valorização da gastronomia nacional não passa pelo seu reconhecimento como bem patrimonial que merece ser protegido como expressão da cultura nacional?
A valorização da culinária brasileira passa pela reforma do seu marco institucional. A legislação sanitária, por exemplo, é toda feita segundo o figurino da grande indústria. O artesanato não tem vez, pois não consegue atender às exigências descabidas do Estado no plano sanitário. É o caso do queijo canastra, em Minas Gerais. Então, proteger significa, em primeiro lugar, elaborar um estatuto próprio de funcionamento dessa economia baseada na pequena agricultura, que aproxime produtor e consumidor sem a mediação dos processos industriais. Esse quadro de exclusão está em contradição com os esforços internacionais por preservar modos de fazer, ingredientes e produtos ligados à pequena propriedade agrícola. A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) tem promovido esforços visando a preservação cultural da diversidade. O mesmo em relação ao slow food. São pressões sobre o Estado e a sociedade que vão produzir resultados, mas isso demora.
Na sua opinião, o fast-food é a nova comida imperialista?
Não. O fast-food é a globalização culinária urbana. Ele mesmo é bastante variado e já inclui redes de comida brasileira.
Comida e poder têm ligação?
Claro! As novas normas sanitárias, higienistas, que restringem uma culinária tradicional e seus modos de fazer, são imposição do poder político.
O senhor acredita que o estímulo ao consumo exagerado de comida, que por sua vez causa obesidade e uma série de outras doenças, é uma forma de dominação do indivíduo?
A questão não é o estímulo ao consumo exagerado. É a crescente “desimportância” da educação alimentar doméstica, deixando as pessoas à mercê dos seus impulsos mais imediatos na hora de comer que, aliás, tornou-se qualquer hora.
O slow food seria uma corrente contrária a essa dominação? Seria uma forma de resistência?
O slow food é a tentativa de criar uma nova educação do gosto e se contrapõe às formas dominantes.