Cérebro: especialista explica por que a música tem poder de evocar fatos antigos, ocasiões especiais e reanimar sentimentos
Quem nunca recordou algum momento da vida ao ouvir uma música? E quem nunca colocou uma melodia para escutar com o intuito de relembrar uma ocasião especial ou reanimar um antigo sentimento? Pode ser o primeiro beijo, o nascimento de um filho, a conquista de algo muito almejado, uma viagem inesquecível, um Natal em que todos da família estavam presentes.
Se você parar para pensar, certamente fará diversas correlações entre uma música e um determinado momento de sua vida. A ciência explica que as memórias são formadas por conexões temporárias ou permanentes entre os neurônios. Para guardar informações no cérebro, as ligações entre os neurônios são fortalecidas e toda vez que lembramos delas, esses neurônios são ativados.
Diversos estudos apontam que lembrar de uma coisa faz recordar outras, ou seja, uma puxa a outra. Para entender um pouco mais sobre como funciona nossa memória musical, a Metrópole conversou com a professora Ana Maria Caramujo, psicóloga especialista em Musicoterapia e mestre em Ciências Médicas pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
A música costuma fazer parte da vida das pessoas e muitas delas a relacionam com acontecimentos passados. Existe uma explicação para isso?
Ana Maria Caramujo: Sim, uma das características importantes da música é seu caráter evocativo, porque nós memorizamos eventos quando associados a várias informações como sons, imagens, emoções e sentimentos. Hoje, sabemos que muitas são as áreas cerebrais ativadas pela música.
Há alguma região, em especial, do cérebro responsável pela memória musical?
O hipocampo, o córtex entorrinal, o córtex perrininal e o córtex para-hipocampal e a amigdala cerebral são estruturas do lobo temporal envolvidas com a memória, inclusive a musical. Nessas regiões cerebrais ficam armazenados acontecimentos evocáveis, como as imagens, as cores, os sabores e os perfumes, assim como os sons e a música.
Ela é ativada somente quando ouvimos determinada música? Ou também é possível lembrar primeiramente do fato e depois da música que o marcou?
Sendo a memória a capacidade geral do cérebro e dos outros sistemas para adquirir, guardar e lembrar informações, as duas formas de lembrança podem ocorrer. Entretanto, quando nos deparamos com paciente com demência ou com Alzheimer, o que ocorre é que ao lhe apresentar uma música significativa da sua história, sua memória é imediatamente ativada e ele é capaz de se lembrar de fatos e informações, o que não acontece através da linguagem verbal. Esse fato é associado à experiência afetiva que a música propõe e por isso marca intensamente a história das pessoas.
A memória musical pode ser tanto de curta, como de longa duração ou ainda remota? Ao longo da vida podemos esquecer algumas das músicas que gostamos tanto?
Os distúrbios de memória estão mais relacionados com atrofias (diminuição do peso ou do volume do tecido) na amígdala cerebral, no hipocampo ou no lobo temporal, estruturas responsáveis pela memória de curta e de longa duração. Entretanto, a memória de trabalho tem um papel gerenciador e é conhecida como imediata. Nas pessoas sem problemas nas áreas responsáveis pela memória, podem parecer ter esquecido as músicas que elas gostavam, mas assim que são motivadas a se lembrarem, o poder evocativo as fazem recuperar suas lembranças e consequentemente recordam-se daquelas um dia aprendidas e significativas em suas vidas.
A música também é um importante instrumento no processo de aprendizagem para crianças e adolescentes, usada inclusive nos cursinhos pré-vestibular e em aulas de idiomas. Ela favorece memorizar informações mais difíceis ou complexas?
Sim, é um facilitador justamente porque a música ativa diferentes áreas cerebrais e isso ajuda num maior número de associações, o que facilita a memorização.
A memória é capaz de moldar nossas preferências musicais?
Não, nossas preferências musicais é que se explicam por nossas memórias agradáveis em relação às músicas que foram associadas a situações de relações afetivas-emocionais positivas, informações, experiências, situações significativas, aprendizado, entre outras. Nesse sentido pode-se dizer que há uma tendência a memorizar determinadas músicas e não outras desagradáveis, associadas a situações ruins.
E no caso das músicas que não são dos ritmos que nos agradam, mas acabamos memorizando-as e sempre nos pegamos a cantá-las? Como o cérebro age nesses casos?
Essas músicas geralmente são criadas com esse objetivo. Elas têm ritmos bem marcados, rimas simples, com temas que se repetem e, portanto, memorizamos rapidamente, mesmo que não sejam da nossa preferência. É o lobo-frontal o responsável por isso.
Nossa memória privilegia as emoções mais fortes. Isso se dá tanto em relação às emoções positivas quanto às negativas?
A amígdala cerebral é necessária para o processamento emocional da música. É uma estrutura que faz parte do sistema límbico responsável pelas emoções. Quando ouvimos um som ou uma música ela é imediatamente ativada, seja por emoções positivas ou negativas. As emoções provocadas pela música geralmente estão vinculadas a um fato experimentado, por isso, é importante que o musicoterapeuta conheça o histórico sonoro-musical da pessoa.
Memorizar uma música tem relação com a intensidade da atenção que prestamos no primeiro contato com ela?
Essa memorização envolve muitos fatores, entre eles a atenção e a concentração ao ouvi-la, não apenas no primeiro contato, pois envolve as associações que ocorrem a partir da audição desse som. Assim como há diferentes tipos de ouvintes, há aqueles que têm maior facilidade em memorizar a letra da música e aqueles que “guardam” facilmente a melodia.
Por que a memória musical não se perde nem mesmo quando a pessoa sofre de amnésia ou Alzheimer?
Estudos recentes mostram que mesmo quando pacientes apresentam a memória comprometida, a musical está preservada, por isso a musicoterapia é um tratamento adequado para casos de Alzheimer, coma e acidente vascular encefálico (AVE), entre outros. Pesquisas indicam que apesar da amígdala cerebral estar atrofiada, portadores de Alzheimer respondem ao estímulo musical. Indicam ainda que a musicoterapia pode contribuir para deter o avanço da doença.