RODRIGO DE MORAES

No cinema

Rodrigo de Moraes
20/02/2013 às 05:06.
Atualizado em 26/04/2022 às 04:05
ig - Rodrigo Moraes (CEDOC)

ig - Rodrigo Moraes (CEDOC)

O cronistaesportivo Paulo Sant’Ana, gremista empedernido e irascível, distribuía suas costumeiras broncas em programa diário da TV Gaúcha, afiliada da Globo no Rio Grande do Sul. Era uma segunda-feira, lá pelo começo dos anos 80, e o Sant’Ana esbravejava, se bem me lembro, sobre o naufrágio do Grêmio na partida da véspera.

Com sua retórica pouco dada a sutilezas, como um inspetor escolar repreendendo um aluno gazeteiro, ele atribuía à torcida parte da responsabilidade pelo fracasso do time em campo. “Não é hora de ficar com o radinho de pilha na orelha. Não é hora de ficar se empanturrando de pipoca. É hora de torcer!”, vociferava.

Para Sant’Ana, a dispersão “pipoco-radiofônica” do público nas arquibancadas dos estádios era uma heresia, porque desvirtuava o sagrado ato de torcer. Torcer envolveria uma dedicação quase religiosa, ascética, uma devoção incondicional, em toda sua agonia e glória, à história que se desenrola no gramado.

Algumas vezes na vida me interessei por futebol; a áspera figura de Paulo Sant’Ana, no entanto, jamais me despertou simpatia. Mas me lembrei dele, mais especificamente de suas investidas contra esse torcedor displicente, ao pensar nas plateias dos cinemas de hoje em dia.

A sala de exibição é um lugar que, para mim, também tem algo de sagrado. E o ato de assistir a um filme exige uma devoção análoga à que o comentarista gaúcho — por mais extremadas que fossem suas opiniões — cobrava do público. Cinema exige silêncio, concentração, cumplicidade com a narrativa que se desenrola na tela. E esse respeito é algo que deveria ser observado ao apagar das luzes.

Mas há um comportamento irritante e generalizado de grande parte das plateias de cinema: a de achar aceitável conversar nos momentos de “calmaria” dos filmes, como no dos créditos iniciais e nas passagens sem diálogos. Ora, esses momentos são parte da história, são intrínsecos ao filme e à experiência cinematográfica como um todo. Exigem, portanto, silêncio.

Além disso, também considera-se aceitável deixar smartphones ligados, ainda que no “modo silencioso” (o que, lamentavelmente, também é cada vez mais raro), como se a conspícua luz fluorescente da visores não quebrasse o encanto da sala escura.

Me chamem de ranzinza e radical (assumo a pecha, porque sou isso mesmo), mas a tal da pipoca (que também provocava arrepios em Paulo Sant’Ana) é algo que me provoca ojeriza. Em parte porque é um hábito a que os espectadores parecem ter aderido sem pensar, como se fosse item obrigatório do programa; em parte porque é extremamente irritante assistir a um filme enquanto ouvimos o vizinho de poltrona, munido de um balde do produto, mastigar a sua cota, num crec-crec interminável.

Tive uma experiência muito desagradável recentemente, em uma sessão de As Aventuras de Pi, em um shopping da cidade. Era um sábado à noite, cinema lotado. Ao sentar e dar uma conferida na plateia ao redor, fui me dando por vencido, sabendo que minha tolerância teria de ser elástica frente à constelação de luzinhas de celulares (e aos seus donos mal-educados) que se anunciavam antes da sessão começar. Apagaram-se as luzes, e as conversas, para meu alívio, foram reduzidas a cochichos, até sumirem frente às imagens arrebatadoras projetadas em 3D na tela e a dinâmica do roteiro.

Mas estes são tempos dispersivos: o casal sentado ao meu lado começou a se entediar lá pela uma hora e meia de filme e começou a conversar. Disse a mim mesmo que não iria me aborrecer com aquilo. Mas o smartphone do rapaz começou a apitar. Uma vez, outra vez, uma terceira vez. Farto daquilo, me virei para ele e pedi, contendo minha indignação no tom baixo da voz: “Meu, desliga esse negócio, está enchendo o saco.” A reação inicial dele foi de surpresa, como se fosse a última coisa que esperasse ouvir no mundo. Depois, começou a me encarar, como se tivesse sido vítima de um ultraje.

Cruzei os braços e passei a encará-lo de volta, numa reafirmação do que eu tinha dito. Medimos forças por alguns segundos, ao cabo dos quais ele desistiu e voltou o olhar para o aparelhinho em suas mãos, como se admitindo a derrota. Mas aí já era tarde. O incidente me aborreceu e me desconcentrou, e mal lembro dos últimos 20 minutos de projeção. Mais viva na minha memória está o que deve ter sido uma cena cômica, lamentavelmente cômica. Dois sujeitos se encarando na penumbra, por trás das lentes escuras dos óculos 3D, porque um deles achava perfeitamente normal se comportar em uma sala de cinema como se estivesse na sala de casa.

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