ZEZA AMARAL

No álbum da vida

Zeza Amaral
29/07/2013 às 21:47.
Atualizado em 25/04/2022 às 07:15

Coração e memória em frangalhos. Torcedor de futebol tem coração e memória de colcha de retalhos. Rimou mas continua sem solução, o coração e a memória.Na esquina de cima de casa morava o menino Paulo que torcia para o São Paulo e tinha um time de botão com a cara dos jogadores: Poy; De Sordi e Mauro; Dino e Bauer; e Alfredo... uma defesa intransponível nos finais dos anos 50.O futebol me acordou para a vida quando ouvi meu pai discutir com um amigo que o Djalma Santos era melhor que o De Sordi. A discussão era sobre a seleção convocada para disputar a Copa do Mundo de 1958, na Suécia. Torcedor do Ypiranga Futebol Clube, ele estava sendo sincero na sua opinião enquanto o amigo esperneava seus argumentos raciais, coisa que vim a descobrir anos depois: De Sordi era branco e Djalma Santos, um negrão de “canela grossa” — o que, na época, significava desprezo, pois na cultura do comércio da escravatura, que ainda perdurava naqueles tempos, os negros mais valiosos eram os que tinham “canela fina”.Desconheço o fim da porfia porque meu pai logo me mandou pegar a sacola de mantimentos e zarpar pra casa — e meu pai nunca foi de conversar muito com os filhos, o que, de resto, nunca me importunou: pois segundo se acreditava, e com razão, pai era pai e filho era filho. Tudo muito simples como respeitar para ser respeitado.E o beque direito do São Paulo, Nilton De Sordi, foi competente até a semifinal daquela Copa quando, contra a França, se machucou e deu lugar ao negrão Djalma Santos. E o Brasil ganhou a sua primeira Copa do Mundo e De Sordi não apareceu na foto histórica. E Djalma Santos jogou todas as partidas na Copa de 62, sagrando-se um raro bicampeão do mundo; e encerrou a carreira jogando apenas em três clubes: Portuguesa, Palmeiras e Atlético Paranaense, onde encerrou a carreira aos 40 anos de idade e campeão estadual, em 1971.Sempre achei que o meu pai jamais iria morrer e que a vida seguiria tranquila e sem maiores problemas. Mas a vida é uma partida que sempre acaba em derrota, sem nem mesmo a chance de um desempate em uma prorrogação ou por pênaltis. E Djalma Santos, o beque direito que o meu pai achava o melhor do mundo, também morreu e abriu aqui mais um abissal precipício de saudade. Mas de alguma forma, ou por algum motivo, sinto que ambos, ele e Djalma Santos, continuam imortais. Figuraças carimbadas do álbum da minha vida.

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