Raízes: fiel às técnicas clássicas, Daniel Veríssimo defende que a gastronomia está olhando para o que há de mais original e pratica em seu Boiabá um menu com toques autorais e pitadas caseiras
Minutos antes de conceder esta entrevista à Metrópole, o chef e restaurateur Daniel Veríssimo estava atônito, imerso na negociação com um fornecedor, no encalço do melhor produto. Só se despiu do dólmã depois de acertar as aparas de uma encomenda “preciosa” para o seu Boiabá. “Sou curioso por definição, meio caxias, é verdade, e bastante fiel às técnicas clássicas, às receitas originais. Daí a preocupação com os ingredientes, os métodos e os procedimentos que adoto”, pondera ele, sobre a lida no restaurante inaugurado há quase um ano no distrito de Barão Geraldo.
Enxuto, o cardápio da casa traz carnes, aves e peixes grelhados entre os principais; guarnições e saladas versáteis, que denotam a vertente autoral desvelada partida após partida; e sobremesas com jeitinho caseiro e boa dose de brasilidade, das compotas aos pudins. Ao revisitar as próprias referências, o chef entrega que adora o trabalho do argentino Francis Mallmann, um ícone apaixonado pelo fogo e pela brasa e defensor da ideia de que a intuição deve servir de norte ao cozinheiro, algo claro no livro Sete Fogos – Churrasco ao Estilo Argentino (2012).
“A carne perfeita depende de muito pouco. Bastam um produto de excelente qualidade e uma reação de Maillard certeira, em alta temperatura, para que os sabores se revelem. A interferência do cozinheiro deve ser mínima. Sal com parcimônia, molhos e guarnições saudáveis, e ponto exato, como manda a técnica, desde que esse esteja ao gosto do comensal. O paladar determina a perfeição.”
Memorabília
Serras, moedores, cucos de parede, facas e outras peças que decoram o Boiabá já fizeram parte da coleção de objetos de afeto de seo Osmar, pai do chef, homem criado no campo e encantado pelo cultivo do café. “Ele acompanha a colheita, a secagem, a torra. Não que pretenda comercializar o produto, mas divertir-se com o processo. E é claro que tinha de referenciá-lo”, diz Veríssimo. “Agora, a maior influência gastronômica que tive foi minha mãe, dona Geni, cozinheira de mão-cheia. Claro que tenho “ene” referências de grandes chefs, mas minha convicção de saberes e fazeres deriva dela. Aprendi muita coisa ao vê-la cozinhar e por me colocar a investigar, sozinho, as receitas que ela executava”, pontua.
Custou um pouquinho até que Veríssimo se desse conta disso. Na verdade, duas cruzadas de Atlântico. Na ida, com destino a Londres, o pretenso administrador de empresas queria apenas dominar outro idioma e sobreviver aos fogs que houvesse. “Aos 24 anos, tranquei a faculdade e fui. Quinze dias após chegar lá, consegui emprego como cleaner num restaurante italiano (Café Pasta, em Wimbledon). Um mês depois, já estava no treinamento na cozinha e bastou um brigueiro, bem no início do torneio de tênis, para que eu assumisse novas praças. Ao final de um ano, me vi completamente fisgado pela gastronomia, tal dona Geni”, conta.
No retorno ao Brasil e ciente do que eram os bastidores do ofício – glamour ilusório, lida sem trégua, adaptação dos ingredientes locais à culinária em voga e muitos eteceteras –, Veríssimo concluiu a faculdade de administração e decidiu: queria ser cozinheiro.
Passagens
No campus Águas de São Pedro do Senac, perscrutou a cozinha afetiva e asiática do chinês Thompson Lee, lapidou as técnicas da culinária francesa e da confeitaria ao lado do chef Fábio Fiori. Anotou as referências dadas, de bandeja, pelo chef Andrew Scott Bushee. Até de vinho e harmonização quis entender para seguir adiante. Já no primeiro estágio, meteu-se na cozinha do chef Théo Medeiros, de quem ouvira tanto falar e com quem afirma ter aprendido as nuances da rotina de um restaurante.
“A maneira dinâmica como ele conduz a equipe, planeja o estoque, cria e executa os menus sempre foi exemplar. Daí ter aprendido tanto com esse luso-francês que se adaptou de um jeito genial à cozinha brasileira. Ao mesmo tempo, no restaurante em que trabalhei em Londres, tive a exata noção de quão detalhado pode e deve ser o controle de ingredientes e processos. Diariamente, tudo era pesado e identificado para que houvesse o mínimo de desperdício. Ainda chego lá”, promete.
Pois o tutor de Veríssimo foi um dos primeiros clientes do Boiabá, projeto ninado em sociedade com dois irmãos ao longo de dois anos. “Ele é de uma generosidade impressionante, imagine meu orgulho. Lembrava da minha intenção de trabalhar com massas artesanais e gastronomia italiana, sabia que tinha prestado algumas consultorias. Ao se dar conta de que eu tinha escolhido me dedicar às carnes, achou bacana. Logo ele, que tanto entende do riscado, de cortes, de tudo”, comenta.
Se deu medo de encarar a fera? Ô se deu. Ainda mais se considerar um caminho tão “curto” até a abertura do próprio restô. “Se não fosse ousado como sou enquanto empreendedor e administrador, jamais teria me arriscado a abrir um restaurante. Meu lado cozinheiro sabia que a lida seria duríssima. Por ter passado por todas as praças, pois estava a fim de aprender, de fato, sei o que significa chefiar uma equipe”, pondera.
Planos
Ao mirar as tendências, Veríssimo considera que as técnicas da cozinha molecular (ou tecnoemocional) são hoje meras ferramentas. Declina das invencionices e releituras até onde pode – ou até que a adaptação de algum ingrediente seja imperativa. E conclui que o sous vide (cozimento a vácuo) está tão na crista da onda que almeja surfar nela, daqui a pouco.
“Quero testar novas possibilidades. Também estou disposto a percorrer o Sul do País e beirar a Argentina atrás de técnicas locais de cocção. E ir ao Peru de Gaston Acúrio, que tanto soube explorar seus terroirs”, planeja. E prossegue. “Creio que o universo gastronômico está mesmo disposto a olhar para as raízes, para o que há de mais rústico e original. Em muitas situações, as ideias têm superado os resultados a ponto de destruírem um serviço por completo. Já não faz sentido inventar demais”, avalia.