Gostaria de desenvolver aqui algumas premissas relativas à experiência de não enxergar. Não se trata de ideias fechadas, mas simplesmente de afirmações espontâneas, a partir das quais se possam gerar outras reflexões.
Não enxergar é natural. A deficiência visual é uma condição naturalmente vivida por milhões de seres humanos espalhados por todo o mundo, e só é considerada atípica, por não ser uma condição experimentada pela maioria das pessoas. Ter deficiência visual implica, com certeza, enfrentar inúmeros desafios, mas estes decorrem do pertencimento a um mundo preparado para quem enxerga e não da cegueira propriamente dita. Assim, a deficiência visual é uma condição que não é boa nem ruim, mas tão somente natural, porque o valor a ela atribuída depende do contexto em que ela se apresenta, e do significado que ela tem para quem a vive.
Não enxergar é divertido. Sem dúvida, nós que somos cegos vivemos inúmeras situações muito engraçadas em função da deficiência visual, que, reunidas, poderiam fazer parte de um livro. Frequentemente, rimos de nós mesmos, rimos com as pessoas que às vezes não sabem como agir, rimos das inadequações dos ambientes sem acesso. O bom-humor é um aspecto importante da condição de não enxergar, e é fundamental para dar leveza e brilho a esta experiência.
Não enxergar é aprendizado. Ser uma pessoa cega significa ganhar a oportunidade de fazer um curso avançado de habilidades humanas fundamentais, como atenção, memória e aprimoramento sensorial. Além disso, quem não enxerga é ensinado, por meio de muitas situações diárias, a desenvolver uma boa comunicação, que lhe permita expressar suas necessidades e se fazer entender.
Não enxergar é precioso. Por mais paradoxal que seja, posso dizer, sem muito receio de estar equivocada, que, quem é cego, no fundo, é grato por isso. Poder estar no mundo contando com outra forma de visão que não a física cria para nós muita inspiração para contemplarmos a realidade com mais afeto, e, em certos casos, nos dá uma sabedoria não experimentada por quem pode ver.
Não enxergar é necessário. Tenho convicção de que, a todos nós, é solicitado desempenhar a tarefa que requer o esforço de que mais precisamos para amadurecer. Assim, não enxergar é uma condição inevitavelmente proporcionada àquele que é cego, porque a cegueira já é parte do plano de vida que a ele foi designado. Cada um necessita ser exatamente do jeito como é para que possa cumprir o seu propósito, e a alguns foi dada a tarefa de viver no mundo sem a visão.
Enfim, posso supor que talvez só quem não enxerga sabe realmente o que quer dizer não enxergar. O fato é que sabemos se tratar de uma experiência única, valiosa e cheia de gratificações.
*Fabiana Bonilha, Doutora em Música pela Unicamp, psicóloga, é cega congênita.
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