GASTRONOMIA

Não confunda polenta com angu

As receitas são parecidas, mas cada uma tem lá sua personalidade; de qualquer maneira, ambas são perfeitas para os dias de inverno, que pedem momentos de conforto

28/07/2013 às 05:02.
Atualizado em 25/04/2022 às 10:52

A nos se passaram e muitas quirelas mesclaram-se no tacho até que a polenta evoluísse à base conhecida hoje: farinha de milho, água e sal, em suma. A comida mole, que sustentou exércitos gregos e romanos, difundiu-se pelo Norte da Itália e serviu de base à alimentação de nobres e plebeus por séculos, tem versão “aparentada” e à brasileira: o angu, de sotaque africano e firmado em tradição mineira, feito com fubá mimoso, de farinha miudinha. Eis o detalhe a desandar os dois cozidos. Polenta que é polenta, à italiana, leva farinha de milho de granolumetria mais grossa, do tipo bramata; apresenta textura delicada e sabor suave. Pode ser servida sozinha, pura ou com molho, na condição de entrada, prato principal ou acompanhamento.A teoria mais difundida sobre a origem do prato sustenta que à época do império romano um cozido de cereais – geralmente uma porção de quirelas de farro, mais duro do que o trigo –, servia de base à alimentação dos soldados e dos camponeses (pão era um luxo). Aquela espécie de mingau era chamada de puls, termo de origem latina, ou pultem; que mais tarde seria apelidada de pulenda ou poenta, em Vêneto, no Norte da Itália, onde o consumo se popularizou e o preparo se sofisticou. Ragus, carnes de caça, verduras, queijos de montanha, embutidos e molhos serviriam como acompanhamentos.“O fato é que, até o século 16, a Europa não conhecia o milho, tampouco a semolina de milho, base da polenta que conhecemos hoje e que já teve inúmeros outros nomes. Grãos de cevada (na arcaica receita grega), aveia, arroz e, mais tarde, trigo haviam servido às papas anteriores, de colorações mais esbranquiçadas ou escuras, dependendo do tipo de cereal usado. Com a descoberta das Américas pelo genovês Cristóvão Colombo, o milho, de característico tom amarelado, passou a ser cultivado e foi, então, introduzido à receita”, explica o chef e professor de gastronomia Sérgio Rauen, da Corina Gastronomia Escola de Cozinha. Foto: Carlos Sousa Ramos/AAN Sérgio Rauen, da Corina Gastronomia Escola de Cozinha: 'Com a descoberta das Américas, o milho, de característico tom amarelado, passou a ser cultivado e foi, então, introduzido à receita' Calcula-se ainda que, por volta de 1550, os camponeses da região de Friuli Venezia Giulia, vizinha a Vêneto, já sabiam prepará-la com farinha de trigo amarela. Daí aquela ser considerada a verdadeira “pátria da polenta”, muito embora haja controvérsia. Os lombardos, por sua vez, defendem que a cidade de Bergamo detém as mais antigas receitas italianas de polenta, datadas do século 17.Disputas apartadas, sabe-se que o prato se tornou tão emblemático na Itália que até artistas se dispuseram a eternizá-lo. O poema épico Orlando Furioso, escrito por Ludovico Ariosto, no século 16, por exemplo, cita um herói que se empanturra de uma espécie de polenta antes de morrer. Foto: Dominique Torquato/AAN Francesco Bonaiuti, do Laura e Francesco Ristorante: 'Os brasileiros gostam de exagerar no molho, é cultural, tudo bem. Mas, na Itália, para massas e polentas, o pouco é a regra' Frita, jamais! Piemonte, Valle d'Aosta, Lombardia, Trentino, Friuli Venezia Giulia, Vêneto e Emília Romana são as regiões situadas na porção setentrional do país da bota em que a polenta era e ainda é amplamente difundida. Cada uma estabeleceu os acompanhamentos característicos do próprio terroir para suas tantas polentas, é verdade, mas a essência familiar e hospitaleira do prato substancioso, nutritivo e aconchegante se manteve ao longo dos anos.Natural de Bolonha, na Emília Romana, o restaurateur Francesco Bonaiuti (do Laura e Francesco Ristorante) explica que no preparo tradicional típico, tão bom de ser consumido no inverno, o cozimento é feito em tacho de cobre (paiolo), muito lentamente. A farinha de milho deve ser adicionada à água aos poucos e mexida sem parar com um varão ou uma colher de madeira (de avelã ou canela, de preferência), para não formar grumos, por pelo menos uma hora. “Aí pode ser servida mole, que prefiro por ser leve, ou dura, numa mesa redonda (tafferia) e cortada com um fio de algodão ou faca de madeira. Frita, como já vi aqui, jamais”, ensina.Outra ponderação do italiano é em relação às quantidades dos acompanhamentos. “O brasileiro gosta de exagerar no molho, é cultural, tudo bem. Mas, na Itália, para massas e polentas, o pouco é a regra. O sabor suave da polenta deve estar equilibrado com os sabores dos acompanhamentos, nenhum se sobressai. Salpicar muito queijo também não precisa”, aconselha. Num molho à base de seppia e nero di seppia (lula e tinta de lula) ou outro à base de frutos do mar, até mesmo um bom grana padano ralado está proibido. “E na receita da polenta já vai queijo. Lembro que quando criança, era isso e bastava."No restaurante, os molhos são preparados à base de tomate, cebolas e ervas frescas como manjericão, salsa e alecrim, “quase nada” de alho, sal e pimenta-do-reino na medida. “Prefiro as versões mais elaboradas, como as de funghi com gorgonzola e mesmo essa com nero di seppia”, destaca Francesco. Mas tudo vai bem com polenta”, defende. E enumera o ossobuco, vegetais como a berinjela e a abobrinha, as carnes de frango, de porco, de caça e os tantos ragus.Acompanhamentos - Pollo alla cacciatora (frango com alecrim e molho de tomate)- Spuntature di maiale con sugo di pomodoro e cipolla (costelinhas de porco com molho de tomate)- Nero di seppia (lula com molho preto) - Salsiccia con sugo di pomodoro e cipolla (linguiça com molho tomate)- Trippa alla Romana (dobradinha com molho de tomate)- Ragu di verdure (abobrinha, berinjela e pimentão) Noite da Polenta Até 26 de setembro, todas as noites de quinta-feira serão da polenta no Ristorante Laura e Francesco, em Valinhos. Além da polentina de gorgonzola e funghi, o jantar dá direito a um prato de polenta cremosa e dois molhos à sua escolha. Saiba mais: www.ristorantelauraefrancesco.com.br e (19) 3849-6714. Vai bem com: No Norte da Itália, filés de linguado gigante aromatizados com alho são empregados no Friuli, bacalhau no Vêneto, carnes de caça na Lombardia, trufas brancas no Piemonte, só para citar alguns exemplos. Quanto mais sofisticado o acompanhamento, mais nobre a polenta. Foto: Reprodução Angu, prato típico mineiro, tem origem indígena e africana O brasileiro angu “Comemos essa papa de farinha de milho com água no Brasil há muitos anos, de um jeito bem rústico. Que caipira não conhece o angu? Criado em fazenda, eu mesmo comia essa nossa espécie de polenta, feita com uma farinha de milho mais fina e que resulta em textura mais grossa, do ladinho do tacho, na beira do fogão a lenha, com café, leite e açúcar, num prato fundo”, lembra o chef e professor de gastronomia Sérgio Rauen. Angu que é angu, feitinho à moda mineira, de preferência com farinha de moinho d'água, de granulometria bem miúda, não leva sal. É cozido do mesmo jeitinho que a polenta italiana – com cuidado para não ganhar caroço e virar “angu de caroço”, coisa complicada, no dito popular. Vai bem com frango e quiabo que é uma beleza e, se for à moda baiana, tem mais cremosidade e leva escolta de miúdos de boi e de porco. Mas, afinal, como surgiu o angu?“O indígena sulista subsistia do milho, enquanto o do Nordeste, mais da mandioca. Quando os portugueses aqui chegaram, e depois, com eles, os povos africanos, dezenas de outras receitas à base desse cereal, que apresenta tantas variedades e é tão rico em nutrientes, foram introduzidas”, introduz Rauen.É verdade que no Brasil colônia, de monocultura canavieira, e quando quase tudo era importado do reino, comia-se mal. Para ganhar sustança e sobreviver, os escravos lançavam mão das comidas moles, de fácil preparo. Das feitas à base de farinhas de milho (angus) àquelas à base de farinhas de mandioca (pirões). “Frutas nativas, peixe seco e salgado, eventualmente algumas caças; vísceras de boi e de porco também integram esse cardápio de comidas moles. Ainda, feijões preparados com muita água e sal (base da mítica feijoada)” eram opções, lembra Raul Lody, antropólogo, museólogo e pesquisador na área de alimentação com diversos livros publicados.A partir de 1870, os imigrantes italianos que cruzaram o Atlântico em viagem ao Brasil, a maioria oriunda do Norte de seu país, chegaram às regiões Sul e Sudeste brasileiras e restauraram seus núcleos sociais em torno do tacho de cobre. Alguém duvida que foi com eles que aprendemos a receita da verdadeira polenta, e com quem dividimos os nossos angus?“Há pouco, descobri com um aluno que é natural do Rio Grande do Sul que lá eles comem muito a polenta brustolada. É uma tradição. Faz-se uma receita de polenta e, depois de fria, corta-se em pedaços e coloca-se na chapa para grelhar. Depois, adiciona-se manteiga por cima ou outros complementos. Vivendo e aprendendo”, partilha Rauen.

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