Seu legado é reverenciado na Jamaica como um dos grandes tesouros nacionais. Um de seus trabalhos, Exodus, foi apontado pela revista Time como o "Álbum do Século 20"
Estátua de Bob Marley que fica em frente ao museu que conta a sua história em Kingston (Fábio Gallacci/ AAN)
Com suas longas tranças indomáveis e espírito livre, ele varreu o mundo com mensagens que desafiavam os poderosos, louvavam um deus improvável vindo da Etiópia e defendiam o consumo de uma erva perseguida. Em seus discos, o povo humilde dos guetos era convocado a reagir e conquistar o seu espaço de cabeça erguida: Get Up, Stand Up! Ao mesmo tempo, tanto ricos quanto pobres dançavam, e muito.Robert Nesta Marley nasceu em 6 de fevereiro de 1945 no rural vilarejo de Nine Mile, em St. Ann, Jamaica. Filho de mãe negra e pai branco, que o abandonou logo depois, o menino conheceu o preconceito e as dificuldades da vida logo cedo. Ao invés da raiva, optou pela música e fez de uma guitarra a sua arma para conquistar corações e mentes. Em 2015, se estivesse vivo, Bob Marley — considerado o primeiro superstar do Terceiro Mundo — completaria 70 anos.Seu legado é reverenciado na Jamaica como um dos grandes tesouros nacionais. Um de seus trabalhos, Exodus, foi apontado pela revista Time como o “Álbum do Século 20”. Sendo assim, sua imagem e sons estão em toda parte da ilha caribenha.O lugar onde nasceu é também onde ele descansa em um mausoléu que virou uma concorrida atração turística. O antigo cômodo que dividia com a família, onde o artista dizia em música que o chão frio era sua cama e uma pedra servia como travesseiro, foi preservado e Marley surge em imagens como se fosse um ser sagrado, o profeta que espalhou a filosofia do One Love, a igualdade entre as raças e credos.Os guias contam que o rei do reggae foi enterrado com três coisas que eram suas maiores paixões: uma guitarra Gibson Les Paul, a Bíblia e uma bola de futebol. Fontes informais garantem também que Marley levou para o seu encontro com Jah um pote da sagrada ganja, a popular maconha. Como se não bastasse, fãs mais céticos defendem que os restos mortais foram tirados dali secretamente e levados para a sua amada África a mando da viúva, Rita Marley.Independente de qualquer história contada, em cima do imponente túmulo liso de pedra, um guarda-chuva colorido pendurado no teto reforça que, abaixo de Deus, todos somos iguais.Para entrar no local é preciso tirar os calçados e não são permitidas filmagens ou fotos. Contudo, o que geralmente seria proibido em qualquer outro local, ali, pode ser aproveitado sem constrangimento: passear com um grosso baseado aceso nas mãos é algo visto com normalidade. No problem, man! Enquanto a reportagem esteve no mausoléu, turistas belgas não perderam a chance de “homenagear” o ídolo.Do lado de fora da estrutura, vários nativos oferecem a erva. Dentro do complexo, os guias são simpáticos rastas, que não fumam, mas estão sempre prontos para fazer graça e cantar os sucessos daquele que veio à Terra para sofrer, mas que preferiu espalhar o amor e o espírito de luta. Essência O casarão onde Bob Marley viveu depois de conquistar a fama é hoje o seu museu oficial. O rasta mais famoso do mundo jogava futebol com os amigos, recebia suas visitas e dava entrevistas no jardim onde agora o turista aguarda o chamado do guia. O imóvel está localizado na 56 Hope Road, em Kingston, na Jamaica.O espaço é um saboroso playground para quem é fã do rei do reggae. Sem filmar ou fotografar, é possível passear pelos cômodos onde ele compôs vários de seus sucessos — como Three Little Birds (Don’t worry, about a thing/’Cause every little thing is gonna be alright...) —, ver seus discos de ouro, objetos pessoais, locais de meditação, o estúdio particular, o pôster daquela turnê clássica e até mesmo parte do cenário que ele usava em shows pelo planeta. A escada de madeira que dá acesso ao segundo andar também é a mesma que Marley subia e descina correndo para se exercitar. Mas o que mais pode marcar a visita são dois pequenos furos mantidos até hoje na parede de uma das salas. São as marcas dos tiros disparados contra o artista e algumas pessoas que o acompanhavam durante um ensaio em 1976. Uma das balas raspou o peito do artista logo abaixo do coração e penetrou seu braço esquerdo. Por sorte, não era a sua hora. O ataque foi considerado um atentado motivado pelos conflitos políticos que agitavam a ilha naquela época. Dias depois, mesmo ferido, Marley participou do concerto Smile Jamaica, realizado para promover... a paz. Foto: Fábio Gallacci/ AAN Rastafári diante da imagem do bíblico Leão de Judá em muro de Trenchtown, região pobre de Kingston: os dreadlocks</CW></IL> como marca de resistência Perguntado da razão de participar do show ainda com os curativos pelo corpo e correndo o risco real de ser atacado novamente, o músico teria dito: “As pessoas que tentam destruir o mundo não tiram um dia de folga. Como eu posso tirar, se estou fazendo o bem?”. Depois disso, ele rumaria para um exílio forçado em Londres. Sua volta à Jamaica só aconteceria em 1978.Um fato curiso ocorrido enquanto o músico vivia no casarão foi a compra de um automóvel de luxo da marca BMW. Questionado se ele havia se rendido aos apelos dos capitalistas da Babilônia que tanto criticava, Marley escapou da saia-justa com um misto de poesia e malandragem: “Não ligo se é um carro luxuoso. Só achei interessante a coincidência entre a sua marca e o nome do meu grupo, Bob Marley & The Wailers”, teria dito.Barracos de lataMas antes de ser um astro do reggae e morar em um bairro nobre, Marley viveu com a mãe, Cedella, na favela barra pesada de Trenchtown (cidade-trincheira, em uma tradução livre), na periferia de Kingston. Foto: Fábio Gallacci/ AAN População carente Conhecido por seus barracos de lata e o esgoto a céu aberto, o lugar concentrava a parcela marginalizada da Jamaica. E mesmo passados tantos anos, aquele espaço continua sendo dos mais pobres, com conjuntos habitacionais degradados, crianças pelas ruas, falta de áreas de lazer, tráfico de drogas e o ar de perigo que pesa sobre os olhares curiosos dos visitantes. O guia que levou a reportagem ao local aconselhou que ninguém descesse do carro, pedido que foi levemente deixado de lado.Foi ali que Marley conheceu seus futuros parceiros de carreira no grupo The Wailers, Peter Tosh e Bunny Wailer. Mais do que um amontoado de pobreza, Trenchtown também é conhecida como o “berço” do reggae roots. Muitos grupos e artistas solo que se tornaram famosos saíram daqueles barracos. Segundo o próprio Marley, muitos vizinhos ajudavam involuntariamente na composição das músicas do grupo, dando seus pitacos enquanto passavam pelas vielas da favela.Pessoas ligadas ao lugar contam que Marley aprendeu a tocar guitarra em Trenchtown e em seus quintais compôs o sucesso No Woman, No Cry, que acabou sendo creditado a outra pessoa. Também foi enquanto vivia nos números 6 e 8 da chamada First Street que os Wailers gravaram o primeiro álbum do grupo lançado fora da Jamaica, o clássico Catch a Fire.Essas histórias motivaram a criação de um museu em Trenchtown que conta com artigos, instrumentos e mobiliário utilizados por figuras famosas do bairro. Um passeio que, superando o receio e o preconceito, vale muito a pena.Marcas de Bob1945 – Em 6 de fevereiro, nasce Robert Nesta Marley, no vilarejo de St. Ann, Jamaica. Seu pai era o britânico capitão branco Norval Sinclaire Marley. Sua mãe, a negra Cedella Booker.1956 – Marley se muda com a mãe para a favela de Trenchtown, na capital Kingston.1966 – Casa com Rita Anderson. Marley tem, com várias mulheres, 12 filhos, sendo sete meninos e cinco meninas.1981 – Bob Marley morre, em 11 de maio, em Miami, nos EUA.1999 – A revista Time elege o disco Exodus como o “Álbum do Século 20”.1999 – A rede de TV BBC aponta a música One Love (People Get Ready) como o “Hino do Século 20”.Morte Um ferimento no dedão do pé direito após uma partida de futebol em Londres, no ano de 1977, selou o destino de Bob Marley. Seguindo à risca a sua crença rastafári, ele se negou a tratar o ferimento de forma convencional e, depois, já em um estado mais grave, também não permitiu a amputação do dedo para evitar que um câncer se espalhasse pelo corpo. Marley morreu aos 36 anos, em 11 de maio de 1981, em um hospital de Miami, nos Estados Unidos. Deixou em seu legado artístico um total de 13 discos de estúdio (um lançado após sua morte) ao lado do The Wailers.Erva sagrada dos rastas, maconha ganha as ruasPor mais que muitas pessoas relacionem a Jamaica com o consumo da maconha — muito pela popularidade do reggae e sua defesa da erva —, a droga sempre foi ilegal na ilha caribenha. Mas isso tem mudado. Em fevereiro, o parlamento jamaicano aprovou mudanças na legislação e deu início ao processo de descriminalização da planta.A pessoa que for flagrada portando até 56,7 gramas da erva em público terá que pagar uma pequena multa, mas não será detida. Além disso, o até então delito não constará em sua ficha criminal. Contudo, ainda não é permitido fumá-la em lugares públicos.O próximo passo é permitir o uso da maconha para fins religiosos, medicinais, terapêuticos e científicos.Mas nada disso impede que, como em qualquer lugar do mundo, ela seja comercializada clandestinamente. Em um rápido passeio pela capital, Kingston, foi possível perceber que é fácil conseguir a droga. Uma simples batida em uma porta já coloca o vendedor diante do cliente. O preço, como não poderia deixar de ser em um local turístico e conhecido pelo culto à ganja, é inflacionado para os estrangeiros. Por 5 dólares americanos é possível conseguir uma porção generosa, desde que o comprador seja nativo. Caso contrário, a metade dessa mesma porção pode sair por 40 dólares.A reportagem teve acesso a locais onde era possível comprar e consumir a erva. As pessoas ouvidas consideram o hábito de fumar a planta internacionalmente promovida por Bob Marley e Peter Tosh (o primeiro emprestará seu nome para a primeira marca global de maconha e o segundo fez sucesso com o disco Legalize It) como algo natural, que faria menos mal à saúde do que o vício nos cigarros industrializados, por exemplo. Mesmo assim, todos respeitaram a atual determinação do governo e consumiram a ganja em locais privados.Além da forma conhecida, a maconha jamaicana também é consumida como chá ou bolinhos, ambos vendidos às escondidas. ÍndiaCuriosamente, a presença da erva sagrada dos rastas no país caribenho se deve a um lugar que não leva a mesma fama que a Jamaica. O começo da história remete à época da chegada dos primeiros trabalhadores indianos como imigrantes ao Caribe.Com o fim da escravidão no país, milhares deles foram trazidos pela Grã-Bretanha porque eram uma opção de mão de obra barata para as lavouras locais. O hábito de fumar maconha e também as primeiras mudas da cannabis vieram com esses grupos de trabalhadores.Na estradaEnquanto trafegava pelas estreitas estradas na região de Nine Mile, berço de Bob Marley, a reportagem encontrou pés de cannabis plantados às margens da pista. A população local planta a erva, provavelmente, para consumo próprio. O REPÓRTER VIAJOU A CONVITE DA AMRESORTS E COPA AIRLINES