HISTÓRIA REVELADA

Há 200 anos, Pernambuco criou um 'Brasil alternativo' ao Império de Pedro I

Confederação do Equador previa um país descentralizado e livre da escravidão

Agência Senado
23/06/2024 às 10:58.
Atualizado em 23/06/2024 às 10:58
Pintura em óleo do século XIX reproduz uma reunião de confederados de Pernambuco para tratar da criação de um ‘Brasil Alternativo” (Agência Senado)

Pintura em óleo do século XIX reproduz uma reunião de confederados de Pernambuco para tratar da criação de um ‘Brasil Alternativo” (Agência Senado)

Em 1822, quando o Brasil estava à beira da separação de Portugal, diferentes projetos políticos para a nova nação entraram em disputa. Um dos projetos previa que a antiga Colônia portuguesa pouco mudaria: a nova nação seria monárquica, o território ficaria intacto, a escravidão permaneceria como a base da economia e o poder não seria repartido entre as províncias, mas concentrado nas mãos do governo central, no Rio de Janeiro.

Confederação foi massacrada por ordem de D. Pedro I

Os brasileiros conhecem bem a história. No fim das contas, foi justamente esse o projeto político vencedor, idealizado pela elite do eixo Rio-MinasSão Paulo e executado pelo imperador D. Pedro I a partir do grito do Ipiranga. 

O que os brasileiros não conhecem são os projetos perdedores, aqueles "Brasis alternativos" que, apesar de possíveis, o curso da história não permitiu que se tornassem realidade. 

Tais projetos podem ser pelo menos vislumbrados quando se olham as outras histórias do continente. A Colômbia, a Argentina e outros vizinhos se fragmentaram em diferentes repúblicas. O Haiti foi palco de uma rebelião negra que massacrou os brancos, declarou o país independente e aboliu a escravidão. Cuba se manteve escravista e unida à Espanha. Os Estados Unidos entregaram o poder de mando aos estados, não ao governo nacional. 

A verdade é que houve, sim, um "Brasil alternativo" que conseguiu sair do papel. Foi a Confederação do Equador, que costuma aparecer nos livros didáticos de história como um episódio menor dentro do Primeiro Reinado (1822-1831). 

Precisamente 200 anos atrás, um grupo de revoltosos declarou Pernambuco um país com governo próprio, aberto à entrada de qualquer outra província que também estivesse insatisfeita com a política centralizadora e autoritária de D. Pedro I. 

Esse "Brasil alternativo" era republicano, tinha o poder descentralizado e considerava acabar com a escravidão. 

A Confederação do Equador foi proclamada em 2 de julho de 1824 e ainda contou com a adesão da Paraíba, do Rio Grande do Norte e do Ceará. A nova nação, contudo, teve vida curta. Não chegou a completar cinco meses de existência. Pela força das armas, D. Pedro I sufocou os últimos rebeldes em novembro.

No fim do ano passado, o Senado criou uma comissão para resgatar a história da Confederação do Equador e também planejar e coordenar as comemorações do seu 200º aniversário.

A comissão, formada por cinco parlamentares da Região Nordeste, foi criada a pedido da senadora Teresa Leitão (PT-PE), que também preside o colegiado. Os trabalhos se estenderão até o início do próximo ano. 

Inicialmente, Pernambuco se somou ao projeto independentista de D. Pedro I. A província acreditou na promessa de que, primeiro, o Brasil teria uma Constituição liberal e moderna redigida pelos representantes das províncias, em nada semelhante ao absolutismo monárquico da velha Europa, e, segundo, as províncias da nova nação desfrutariam de generosas doses de autonomia política e econômica.

Uma vez coroado imperador, no entanto, D. Pedro I deixou a dupla promessa para trás. Em outubro de 1823, mudou a lei que regia a escolha dos presidentes das províncias. Antes selecionados pelas próprias províncias, eles passaram a ser indicados diretamente pelo imperador, e o monarca apontou um nome que os pernambucanos não aceitaram.

No mês seguinte, ao perceber que a Constituição que estava sendo elaborada pelos deputados não lhe daria todos os poderes que queria, D. Pedro I mandou, num ato de despotismo, fechar a Assembleia Constituinte. O episódio ficou conhecido como Noite da Agonia. Coube a um grupo de assessores de sua confiança redigir a primeira Constituição brasileira, outorgada em março de 1824. 

Embora a Constituição não chegasse a ser absolutista, os pernambucanos a consideraram pouco liberal, já que colocava o monarca numa posição politicamente superior à do Parlamento, que era a representação das províncias e do povo.

O imperador passou a ter em suas mãos tanto o Poder Executivo quanto o Poder Moderador, o que enterrou a possibilidade de haver equilíbrio entre os Poderes do Império. 

Os pernambucanos entenderam que não poderiam esperar mais nada de D. Pedro I. Assim, o presidente (governador) da província de Pernambuco, Manoel de Carvalho, declarou criada a Confederação do Equador, que planejava redigir em breve a sua própria Constituição - esta, sim, 100% liberal.

Entre outros pontos, esperava-se que a lei máxima da nova república estabelecesse que o poder seria compartilhado irmãmente entre todas as províncias, sem que a União estivesse acima delas, funcionando mais ou menos como os Estados Unidos. Essa era a essência de uma confederação ou federação - na época, os dois termos eram utilizados indistintamente. 

O historiador André Heráclio do Rêgo, do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, afirma: "A Confederação do Equador foi a primeira revolução constitucionalista do Brasil, mais de cem anos antes da célebre Revolução Constitucionalista de 1932, contra Getúlio Vargas, em São Paulo. Foi também a primeira revolução federalista do Brasil. Com efeito, foram esses os seus aspectos principais, mais do que qualquer veleidade separatista." 

O historiador George Cabral, professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), lembra que muitos livros didáticos insistem ainda hoje em apontar o separatismo como característica definidora da Confederação do Equador: "Como a história foi escrita pelos vencedores, a Monarquia rotulou o movimento como separatista, dando a entender que era subversivo e ameaçava a existência do Brasil. Também o rotulou como secundário, regionalista, egoisticamente preocupado com a defesa das prerrogativas locais. O projeto da Confederação do Equador, porém, era para o Brasil todo. Embora não corresponda plenamente à realidade, a narrativa oficial da formação do Estado nacional, forjada pela Monarquia, ignorou os projetos alternativos e se tornou hegemônica." 

Na avaliação de Cabral, até mesmo a escolha de Tiradentes como herói republicano, decidida logo após a derrubada da Monarquia, não foi adequada: "Com todo respeito à história de Minas Gerais, é preciso lembrar que o projeto republicano da Inconfidência Mineira ficou na fase do planejamento. Foi denunciado, descoberto e sufocado antes de ser tirado do papel. Em Pernambuco foi diferente. Tanto na Revolução Pernambucana, de 1817, quanto na Confederação do Equador, de 1824, os insurgentes efetivamente estabeleceram um governo republicano." 

Para o historiador André Heráclio do Rêgo, o Frei Caneca, mentor intelectual da Confederação do Equador, seria um herói republicano mais apropriado do que Tiradentes. Ele continua: 

"A glorificação de Tiradentes e da Inconfidência se deu na Primeira República (1889-1930), período em que houve uma nítida predominância política de Minas Gerais e São Paulo. É o mesmo motivo por que os bandeirantes paulistas foram também glorificados." 

Naquele "Brasil alternativo" criado pelos pernambucanos, a escravidão negra provavelmente seria eliminada em breve. Isso se depreende de dois fatos. 

Primeiro, os principais líderes da Confederação do Equador eram, pessoalmente, contrários à existência de mão de obra escravizada. Depois, uma das primeiras medidas do governo republicano foi abolir o tráfico negreiro da África para os portos das províncias confederadas Segundo o professor George Cabral, da UFPE, o fim da escravidão não tinha na zona rural o mesmo apoio que tinha nas cidades e esse desequilíbrio foi fatal para os confederados: 

"Os senhores de engenho do Nordeste dependiam dos escravizados no cultivo da cana e na produção do açúcar. Um dos motivos para a Confederação do Equador não ter vingado foi justamente não ter contado com a adesão desse poderoso grupo agrário, que preferia o governo de D. Pedro I." 

Ele continua: "A relação entre a Monarquia e a escravidão era tão íntima que, assim que a escravidão foi abolida, em 1888, a Monarquia perdeu a razão de existir e foi derrubada no ano seguinte."

O nome Equador era uma referência às províncias da porção norte do Império, localizadas perto da Linha do Equador, em oposição às províncias do sul, aglutinadas sob o comando centralizador do Rio de Janeiro. 

A Confederação do Equador é anterior ao surgimento do atual Equador, país criado no outro lado da América do Sul em 1830. Alguns pesquisadores creem que, para batizar o seu país, os equatorianos se inspiraram no nome da nação criada anteriormente pelos pernambucanos. Antes da independência, o Equador era o departamento de Guayaquil.

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