REPORTAGEM ESPECIAL

Cubanos esperam dias melhores com fim do isolamento

Reaproximação com os EUA, anunciada recentemente, promete ser ponto de partida para uma nova era no país do Caribe; investimentos estrangeiros devem crescer junto com a economia

Milene Moreto
03/05/2015 às 14:02.
Atualizado em 23/04/2022 às 14:56
Antigos veículos na cidade de Remedios, em Cuba (Milene Moreto/ AAN)

Antigos veículos na cidade de Remedios, em Cuba (Milene Moreto/ AAN)

Há muitas questões em Cuba que diferem o país de praticamente todo o resto do mundo. Os carros da década de 50 espalhados pelas ruas da capital, Havana, dão a impressão momentânea de que a ilha de 12 milhões de habitantes parou no tempo. Mas é só impressão. Essa tradicional fotografia muda constantemente, em cada esquina, em cada cidade. É esboço do que significa o processo de abertura do país sob a perspectiva de uma reaproximação com os Estados Unidos. Vários outros investimentos da comunidade europeia, da China, e até do Brasil, estão retratados em construções, arranha-céus, hotéis de luxo e obras de infraestrutura que começam a sinalizar uma nova era. Foto: Divulgação Prédios e carros antigos: comum em todo o lugar Parte desses investimentos brasileiros está ligada ao Porto de Mariel, uma obra polêmica com financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Social e Econômico (BNDES) e que desagradou parte dos políticos, especialmente a oposição, e da população. Para eles, o dinheiro deveria ser aplicado em obras no território brasileiro. Mas essa não é a única ligação de Cuba com a história recente do Brasil. Além do polêmico envio de médicos para trabalhar por aqui, a nação caribenha se tornou parte do discurso de opositores da presidente Dilma Rousseff (PT) nas manifestações de rua e em redes sociais: O jargão “Vai para Cuba” se tornou uma forma de hostilizar quem defende a gestão petista. Além disso, “esse governo quer transformar o Brasil em Cuba” também fez parte do discurso. Foto: Divulgação Havana, a capital de Cuba, é uma cidade de contrastes. Ao mesmo tempo em que possui ruas com construções antigas e em muitos casos com aspecto de abandono, há também áreas preservadas e prédios novos e modernos Mas, por que Cuba, e não o Afeganistão, o Haiti ou alguma nação da África? Por conta da história socialista da ilha, que ainda é vista como um lugar miserável e atrasado e que vive sob opressão do regime político dos irmãos Castro. Mas, diante do fim do embargo dos Estados Unidos, anunciado por Barack Obama recentemente, o que o povo cubano deseja? Crescimento. Essa parece ser uma resposta padrão. E eles contextualizam. Não querem apenas crescer individualmente. No sistema socialista que defendem, a vontade é de que todos consigam melhorar de vida e que menos cubanos tenham que deixar o país. Eles querem a manutenção da igualdade, mas sem que o povo seja segregado. Uma tarefa delicada e com uma fórmula ainda a ser descoberta: como mudar sem perder as conquistas da revolução?Todo cubano conta uma história difícil pela qual passa ou passou. Muitas vezes, relatam, comiam arroz com banana. A comida distribuída hoje é tida como insuficiente para alimentar uma família com quatro pessoas por um mês. “Se você comer bem, é uma semana. A carne talvez só baste para uma refeição”, conta um cubano que é gerente de um hotel cinco estrelas e recebe R$ 120,00 ao mês, que servem para completar a alimentação e um pequeno planejamento de vida. Entre os itens distribuídos pelo governo estão arroz, feijão, açúcar, sal e meio quilo de carne. Quem consegue um emprego no setor de turismo pode obter uma renda mensal de até 40 pesos conversíveis — moeda para o uso de estrangeiros e de negócios que vale um pouco mais que o dólar. Esse é geralmente um bom salário. Uma remuneração mensal média na ilha equivale hoje a US$ 20 (pouco mais de R$ 60).Roupas usadas são mais baratas. Roupas novas só se compra com peso conversível. Também há lojas estatais. Os carros na ilha são comercializados entre os moradores, ou seja, quando um desiste de ter um veículo, outro pode fazer uma oferta. Isso quando se trata dos tradicionais automóveis antigos. No caso de veículos mais novos, a frota é vendida pelo governo quando é renovada, e então a população pode ter acesso. Muitos também complementam sua renda com dinheiro enviado por parentes no Exterior. Como os médicos no Brasil.MudançasUma das mudanças mais esperadas é o fim das duas moedas. Hoje, a ilha convive com o peso cubano (CUP) para o uso da população e o peso conversível, o CUC, usado por estrangeiros e em negócios da ilha. Mas no bolso deles sempre estão as duas.Outras alterações no regime ocorreram nos últimos anos sob o comando de Raúl. É possível sentir que a manutenção das principais cidades está a todo vapor. Seja na construção ou reparação das vias, restauração de prédios e até instalação de restaurantes que os cubanos chamam de “privados”. Em Havana existem várias obras em andamento em prédios históricos. Uma frota de carros mais nova, apesar de proporção menor, divide as ruas com os automóveis antigos que praticamente já não possuem mais peças originais. Nos locais onde as praias chegam a tirar o fôlego, a rede hoteleira se expande sem freios e com previsões de duplicar a capacidade.VetoEm outros aspectos, no entanto, ainda é preciso evoluir. Um cubano que trabalha com turismo, por exemplo, e acompanha grupos para explicar a história dos lugares, não pode embarcar com estrangeiros para passeios de catamarã. Existe uma lei que proíbe seus moradores de entrarem nas embarcações. A justificativa é que os cubanos podem sequestrar os barcos e fugir. Os cubanos podem sair do país e viajar. O problema é que o governo não permite a eles acumular dinheiro para comprar uma passagem. Com o fim do embargo, o problema deve ser amenizado.Uma questão que acaba segregando os cubanos está na rede hoteleira. As pessoas que trabalham no turismo não podem almoçar ou jantar em restaurantes que são considerados caros e não acessíveis a todos na ilha, assim como os turistas. Eles deixam os grupos e vão comer em outro lugar. Caçar a própria refeição também não é uma boa ideia. Matar uma vaca na ilha é um dos crimes considerados mais graves. É o governo quem controla a quantidade de vacas e autoriza o abate. A criação é usada para abastecer escolas com leite. Se um criador ou morador abater o animal sem autorização, a pena pode chegar a 10 anos de prisão. TurismoO turismo passou a ser a principal fonte de renda do governo. A rede hoteleira tem dimensões impressionantes. O país é sócio majoritário de todos os hotéis, com 51%. A mão de obra é de moradores. Um ou outro gerente é estrangeiro. Além de ser sócio dos hotéis, o governo também possui agências e comanda os serviços do setor. Na semana passada, os hotéis em Cayo Santa María, na província de Villa Clara, estavam todos ocupados, em sua maioria, por turistas canadenses. No ano passado, Cuba recebeu 2 milhões de turistas. Quem trabalha no setor arrisca que ao final de 2015 esse número terá dobrado.Nas cidades turísticas mais afastadas, dificilmente se encontra alguém que peça dinheiro nas ruas. Também não há cubanos morando nelas. Em Havana, no entanto, é possível ver vendedores de charutos falsos e gente pedindo esmola. O acesso a informações ainda é algo restrito. A internet custa caro para o cubano, que consegue acesso somente em lan houses. Para os turistas também não é diferente. A conexão nos hotéis, por uma hora, custa em média R$ 15. Muitas vezes, o serviço não funciona por problemas na rede. Cubanos também defendem o fim do que chamam de embargo tecnológico.Bloqueio começou depois da revolução, em 1960  Cuba vive no regime socialista depois de ter passado pela ditadura de Fulgencio Batista — um governo considerado extremamente violento. Com o apoio dos Estados Unidos, muita terra foi negociada com empresas norte-americanas e inglesas, mas o dinheiro foi embolsado por quem estava no poder. Os cubanos passaram a amargar uma pobreza extrema nesse período e viram a ilha ser invadida pela prostituição e as drogas. As casas de jogos controladas pelos americanos eram usadas para lavar dinheiro. Foto: Milene Moreto/ AAN Barcos e área portuária ao lado do hotel Meliá Marina, em Varadero, uma das cidades preferidas dos turistas O advogado Fidel Alejandro Castro Ruz, líder estudantil, passou anos na organização de forças revolucionárias na tentativa de tirar Batista do poder — e conseguiu em 1959, junto com um jovem argentino, o médico Ernesto Che Guevara e seu irmão, Raúl.O início do novo período, foi marcado pela erradicação do analfabetismo. Che participou do movimento que levou jovens estudantes ao interior com a missão de ensinar a população rural a ler e a escrever. Em pouco tempo, quase todos os cubanos foram alfabetizados.Na sequência, o governo partiu para a reforma agrária, o que criou as primeiras grandes tensões entre Cuba e os Estados Unidos, já que muitos americanos eram proprietários de grandes áreas. Em 1960, os americanos declararam o boicote econômico, cortaram o fornecimento de petróleo e a importação do açúcar. Veio o embargo, chamado pelos cubanos de “el bloqueo”, que fez quase todos os países das Américas romperem as relações com Cuba.O governo então passou a contar com a ajuda da extinta União Soviética e da China. Para estabilizar a economia, a produção era diversa. Depois o foco foi na cana. Nada parecia impedir que a revolução chegasse também à economia.O período mais crítico teve início na década de 80 e perdurou até o fim dos anos 90. Diante das dificuldades, com falta de energia, água e alimentos, 125 mil cubanos deixaram o País pelo porto de Mariel com destino a Miami. Na época, devido ao colapso do comunismo do Leste Europeu, a aposta era de que o regime em Cuba não duraria meses.As primeiras mudanças, no entanto, não ocorrem agora. Passam por uma construção arquitetada por Fidel durante o período mais critico. O país flexibilizou e estimulou investimentos estrangeiros, deu mais liberdade à iniciativa privada e legalizou as transações com dólares americanos. O turismo se fortaleceu.O bloqueio, que ainda não chegou ao fim, é lembrado em placas espalhadas por Havana. A mensagem diz que o embargo “foi o maior genocídio da história da humanidade”.Na opinião dos cubanos, o presidente americano, Barack Obama, foi inteligente ao deixar nas mãos deles a decisão sobre alterar o sistema em vigor na ilha. “Se tivermos essa abertura, se o país conseguir avançar e se a população não estiver satisfeita com as definições, caberá a nós lutar por novas mudanças. Obama não pediu para que o povo de Cuba deixe de ser socialista para reatar o relacionamento com o País”, disse um jornalista que atualmente trabalha com turismo e não quis se identificar com medo de represálias.A revolução é, sim, motivo de orgulho. Cuba ainda respira esse período. Em todas as cidades, mensagens da importância do ato, da participação dos jovens e do socialismo, são espalhadas por todos os cantos. As lembranças da revolução, do aparato utilizado na época, do armamento e das estratégias estão em museus, nas ruas e na memória.A bordo de um táxi no qual trabalha há muito tempo, Roberto conta que esteve em Angola, na luta pela libertação de Luanda — que teve o apoio de Cuba. Lutou a pedido do governo. Ao retornar, virou taxista. “Eu vivo bem em Cuba”. Mostra fotos da família e diz que conheceu Fidel tempos atrás. “Sim, conheci. Fidel e Raúl ainda no período da luta em Angola. Foi extraordinário!”, disse.O rosto de Che está estampado nos quatro cantos a ilha. A mensagem “queremos que sejam como Che” é lema em universidades e vilarejos. Guevara foi morto na Bolívia, aos 39 anos, quando tentava liderar uma nova revolução. Fidel deixou o poder em 2008, depois de ter comandado o país durante 49 anos. Em seu lugar, assumiu seu irmão, Raúl Castro. Fidel, por sua vez, parece não ser tão venerado quanto Che. Não é figura constante em camisetas ou cartazes, como seu parceiro argentino. Questionados, os cubanos dizem que isso não aconteceu ainda porque ele ainda é vivo. A Constituição Cuba proíbe o culto a personalidades vivas, incluindo homenagens oficiais. A jornalista Milene Moreto viajou a convite de Copa Airlines, Meliá Hotéis e Gaviota Turismo

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