CECÍLIO ELIAS NETTO

Mudar a Igreja, mudar o Mundo

Cecílio Elias Netto
15/02/2013 às 05:00.
Atualizado em 26/04/2022 às 04:32

Confesso ter sido um crítico até mesmo feroz da Igreja Católica. A formação marxista da juventude me levou a opor-me à religião, tida como “ópio do povo”. Acreditei nisso como se fosse um dogma, uma doutrina pétrea. E — sem dar-me conta de minhas contradições e fragilidade ideológica — lá me fui, eu, opondo-me aos dogmas católicos. Dogmas? Marxistas, sim; religiosos, não.

Dia chegou quando, então, percebi nada eu entender quer de marxismo, quer de catolicismo. De uma certa forma, eu defendia Marx contra Cristo, pouco sabendo de um ou de outro. A minha era simples cultura de almanaque. E precisei de muitos anos para ser abençoado por relâmpagos indicadores da “douta ignorância”, essa consciência dos limites do saber, essencial para se ir em busca de um saber positivo. Ora, se Deus é infinito, como pode a finitude humana entendê-lo? A alternativa é simples: ou negando-o ou aceitando-o. Admitir o mistério é o primeiro passo, pelo menos para a reflexão.

A angústia, porém, ficou-me. Converti-me de maneira por assim dizer humilhante para quem se dizia intelectual e culto. Foi numa noite solitária de frio intenso quando — ouvindo homens cantando de alegria e paz — fui caminhar por lugares ermos e me deparei com um viveiro de pássaros. Atormentado, encostei a cabeça na tela de arame. E, então, os pássaros, assustados, começaram a voar como que fugindo de mim. E, no chão, duas cobaias — uma branquinha, outra pretinha — correram e se aconchegaram uma a outra. Também, com medo de mim.

Aí, então, aconteceu o que, depois, me explicaram ter sido o momento da graça. Pois tudo se me iluminou na inteligência, o coração se abriu, uma onda de compreensão e de ternura me dominou e todas as minhas resistências desabaram. Se os pássaros tinham medo de mim, se animaizinhos pretos e brancos se agasalhavam uns aos outros — quem era eu, semeando a discórdia, a luta de classes, acreditando que Che Guevara era a síntese perfeita entre Cristo e Marx? Aceitei a conversão. Mas cometi um erro grave ao ir em busca dos porquês: eu quis entender pelos neurônios. Perdi-me. Foi um tesouro que me enriqueceu por muitos anos, mas que abandonei pelos caminhos.

A angústia permanece. Mas, a “douta ignorância” cresce. Tenho, hoje, consciência dos meus limites do saber e lamento a perda da fé dos humildes que me foi dada. Ainda hoje, mergulho em estudos e leituras. Há mais de 40 anos, vivo a aventura de tentar conhecer algo da história das religiões, de filosofias, de credos. Quanto mais avanço, mais me sinto pequenino. E envergonhado de considerações mundanas e superficiais a respeito de dois mil anos de história.

A vida é movimento. Logo, implica mudanças. Uma das provas da existência de um criador é justamente o movimento. Tomás de Aquino, indo beber em Aristóteles, deixou-nos um fundamento básico: “Tudo o que se move é movido por alguma coisa.” Assim, a bola é movida por um bastão, o bastão é movido pela mão. E, de movimento em movimento, chega-se ao primeiro motor aristotélico. Portanto, movimento é vida. E pode provocar alterações e mudanças. Mas estas nem sempre são benéficas ou necessárias. Podem ser acidentais, catastróficas. Um tsunami é movimento que causa mudanças trágicas. Uma brisa pode mudar ambientes aspergindo perfume de flor.

A renúncia do Papa Bento 16 provoca as mais diversas reações e interpretações, excitações e perplexidades. Uma das mais discutidas expectativas diz respeito a mudanças radicais na Igreja, para que se adapte aos novos tempos dessa outra modernidade. Ou seja: o Mundo quer mudar a Igreja. Mas a razão de a Igreja existir está em sua vocação milenar para, com a doutrina cristã, ser ela, Igreja, a transformadora do Mundo. Evangelizar é estender a Boa Nova, que nada tem a ver com hedonismo, materialismo, com a nossa visão dionisíaca de vida e de existência.

A Igreja Católica — como o Islamismo, o Judaísmo, para se falar apenas em religiões abrâmicas — se move, movimenta-se. Mas dentro de seus princípios, alguns deles pétreos. Aceita-os quem quiser ou puder. Mudar para se adequar a essas banalidades todas? Ora, os franceses sabem: “plus ça change, plus c´est lá même chose.” — “quanto mais se mexe, mais é a mesma coisa”. E Lampedusa, em "O Leopardo", já nos deixara a observação: “Tudo deve mudar para que tudo fique como está.”

O Vaticano não é tão somente um depositário da fé cristã. É, também, um Estado. E com um formidável colégio de cientistas, filósofos, pensadores, em todas as áreas do conhecimento humano. Quando pobres intelectuais, como eu, pensam o Vaticano estar indo devagar, ele já está voltando. Tem movimento próprio.

*Cecílio Elias Netto é escritor e jornalista

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