Li anteontem sobre uma cantora lírica argentina que morreu após sofrer um derrame em pleno palco. A elogiada soprano Florencia Fabris sentiu-se mal durante a apresentação do "Réquiem", de Verdi, na última sexta-feira, mas continuou em cena, sentada, até concluir a sua parte. Foi levada a um hospital, onde passou por cirurgia. Não resistiu, porém, a um segundo AVC e morreu no domingo, em Mendoza.Fiquei pensando a respeito desse episódio, trágico por mais de um ângulo: Florencia era um nome promissor da cena lírica argentina, e a morte a arrebatou aos 38 anos, idade em que um artista desse metiê mal conheceu o amadurecimento profissional; ela era mãe de duas crianças, de 7 e 9 anos; o fato do incidente ter se desenrolado durante a apresentação de uma obra funeral (por definição, um réquiem é uma missa fúnebre de tradição católica romana) ressalta o caráter funesto do episódio.Em um site de notícias argentino, o TN.com, a foto que ilustra a notícia da morte de Florencia tem um quê de premonitória: mostra a cantora em cena (não sei se em sua derradeira apresentação), trajando uma espécie de camisola branca, ajoelhada no palco, os braços e mãos estendidos para frente como se implorando por algo, o rosto carregado com uma expressão de súplica.Fiquei pensando a respeito, como disse, e lembrei de outras mortes em outros palcos, da vida real e da ficção.Não quero incorrer no chavão do artista que encontra a morte “fazendo o que ama”, em pleno exercício de sua função. É uma tentativa de consolo, não mais que isso, dar contornos de glória a um episódio como o que envolveu a soprano argentina — ainda que ela tenha morrido várias horas depois, em um leito de hospital. Imagino que Florencia queria muito mais do que exaurir em cena os últimos momentos de seus trinta e tantos anos, queria continuar cantando por décadas a fio e, aí sim, quem sabe, morrer velhinha, realizada, em paz.Mas a morte no palco, enfim, é algo carregado de simbologia. Volto e meia cito um texto, que acho definitivo, do Bernardo Carvalho sobre morte e arte. E, volto a citá-lo, me desculpem se soo repetitivo, mas acho que se encaixa perfeitamente no assunto de que trato aqui. Carvalho diz que a grande tragédia que confronta o homem é o de saber de antemão que vai ser derrotado em sua luta contra o tempo e a morte. Mas lhe resta um consolo: a arte que ele produz vai resistir ao tempo e vai sobreviver ao próprio homem, ainda que, às vezes, a própria arte fale também da morte.Florencia cantou o "Réquiem", e por ironia do destino, a sua apresentação acabou sendo um réquiem para ela mesma. Em 1999, durante um show na Itália, o vocalista e contrabaixista do grupo de rock Morphine, Mark Sandman, caiu fulminado em pleno palco após sofrer um infarto. Curioso que Sandman também seja o nome, em inglês, do personagem mitológico que sopra areia nos olhos das crianças para fazê-las dormir...No filme "A Rosa" (Mark Rydell, 1979), Bette Middler vive a personagem-título, uma estrela do rock calcada em Janis Joplin (1943-1970). Autodestrutiva como a cantora que a inspirou, a personagem acaba se entupindo com um coquetel de drogas para o triunfante show que marca o seu regresso à cidade-natal. Como é de se esperar, sofre um colapso no meio da apresentação e cai sem vida diante da plateia.É um gran finale sinistramente apoteótico, irrecorrível. Por outro lado, é um momento que parece selar, em definitivo, o momento em que vida e arte são uma coisa só, indissociáveis. Ainda que Florencia Fabris certamente tivesse desejado que, com ela, as coisas não tivessem sido assim.