Mil Vezes Boa Noite (João Nunes)
Há várias maneiras de olhar Mil Vezes Boa Noite (Tusen ganger god natt, Noruega, Irlanda e Suécia, 2013), do norueguês Erik Poppe. Uma delas envolve a desconfiança de que estamos em mais um filme edificante de europeus (e intelectuais) cheios de culpa tentando salvar o mundo – neste caso, Oriente Médio e África. E o roteiro de Harald Rosenløw Eeg sinaliza o tempo todo para esse viés.
Afinal, conta a história de Rebecca (a sempre bela e impressionantemente boa Juliette Binoche), uma das melhores fotógrafas de guerra do mundo. Quando em Cabul (Afeganistão), ela se fere gravemente ao acompanhar os preparativos mórbidos de uma mulher-bomba pouco tempo antes de esta explodir.
De volta a casa, o marido Marcus (Nikolaj Coster-Waldau) decide se separar por não mais suportar a possibilidade de ela morrer em meio a um conflito. E, para salvar o casamento e a relação com as duas filhas, Rebecca renuncia a profissão. Claro que não será bem assim.
Logo nas primeiras sequências somos levados a raciocinar que o filme serve como analgésico para nossas mentes a respeito das atrocidades da guerra. Alguém faz o trabalho sujo (que bom que esse alguém existe), denuncia ao mundo, autoridades tomam providência e nós dormimos em paz.
Em seguida (tão complexo quanto) levanta uma questão ética: a mulher que atua como personagem da reportagem de Rebecca carrega uma bomba que matará inocentes. Nas entrelinhas, podemos supor, de um lado, que à fotógrafa só interessa uma boa foto (o que não é verdade); de outro, que ela denuncia, mas inconscientemente apóia a ação (o que tampouco é verdade).
Este complicado universo que tem a guerra como cenário e nos coloca com um pé atrás em relação ao filme tem na sequência final uma grande sacada. E não apenas surpreende como somos levados a rever a visão inicial que tínhamos do roteiro.
Diante da reviravolta e, mesmo não sendo uma grande obra, Mil Vezes Boa Noite merece elogios. E não só porque reverteu expectativas, mas porque soube lidar tão bem com um drama delicado, depois de passar muito perto de cair no edificante.
Há ainda outro tema relevante: sendo casada e com duas filhas, Rebecca faz um trabalho duro que a obriga a enfrentar tensões constantes e a passar longo tempo fora de casa – situação capaz de desestruturar qualquer família.
Fosse homem, a discussão seria outra e não por preconceito. Marcus sente falta da mulher e as filhas também; com isso, coloca em pauta o papel da mulher contemporânea na estrutura familiar. Não é tão simples como parece.
O roteiro se aprofunda um tanto mais ao tentar entender o que leva essa mulher a deixar marido e filhas e encarar tamanhos perigos. E, em paralelo, confronta a segurança dos países ricos e a completa insegurança em que vivem comunidades africanas ou de países em guerra.
Bem, o assunto é vasto. Rebecca sinaliza a tal culpa dos intelectuais e ricos? Ou tem necessidade interna tão grande por trabalho tão perigoso que a mobiliza de modo irreversível? Com tantas questões não dá para ignorar Mil Vezes Boa Noite.
* Publicado no Correio Popular de Campinas em 6/11/2014