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Durante uma semana, um grupo de crianças com TDA/H se reuniu com outras crianças em Monte Alegre do Sul para brincar e mostrar que, em um ambiente inclusivo, eles podem surpreender

Cibele Vieira
05/02/2024 às 15:00.
Atualizado em 05/02/2024 às 15:00
Acampamento realizado entre 8 e 11 de janeiro reuniu 16 jovens com e sem TDA/H, promovendo a integração entre eles (Divulgação)

Acampamento realizado entre 8 e 11 de janeiro reuniu 16 jovens com e sem TDA/H, promovendo a integração entre eles (Divulgação)

Acostumadas a se sentirem observadas, julgadas e comparadas, as pessoas diagnosticadas com o transtorno do Déficit de Atenção/ Hiperatividade (TDA/H) nem sempre se sentem acolhidas ou à vontade em ambientes coletivos. Mas um grupo com 16 crianças – com idades entre 7 e 13 anos – viveu uma experiência bastante diferente e interessante no início de janeiro ao participar de um acampamento de férias na cidade de Monte Alegre do Sul. Em uma iniciativa inédita no Brasil, em parceria, a pedagoga Simone Hernandes Pereira e o médico Guilherme Reis promoveram este primeiro encontro (de 8 a 11 de janeiro) e gostaram tanto do resultado que já estão programando novas temporadas.  

“Foram dias de muitas brincadeiras, sem qualquer semelhança com o trabalho terapêutico, e nesta ludicidade, eles conseguiram mostrar e lidar com suas dificuldades e medos, celebrando pequenas vitórias e conquistas. É bonito ver a evolução, a capacidade que eles têm de sair de uma dificuldade por si próprios, quando têm oportunidade”, comenta Simone. Ela mantém acampamentos periódicos no sítio da família, que foi adaptado em sua estrutura para receber grupos de crianças e adolescentes, e sempre inclui crianças com síndromes variadas. Entretanto, foi a primeira vez que montou um grupo com portadores desse transtorno. 

Guilherme Reis é pai de Francisco, de 13 anos, e já tinha lido a respeito de acampamentos especiais, mas somente no exterior. Ele conta que o filho sofre bullying e exclusão na escola e tem dificuldade para conquistar amigos em um ambiente em que se sente diferente. “O acampamento permitiu que eles pudessem brincar, se divertir e serem aceitos, sem ninguém se sentir diferente. Tiveram a liberdade de poder ser quem eles são”, comenta. Para Guilherme, outro ponto positivo foi o fato de os participantes terem se relacionado e descoberto afinidades, o que possibilitará reencontros e manutenção das amizades no retorno a São Paulo, onde moram algumas famílias.

Especialistas cuidaram de adaptar as brincadeiras promovidas no acampamento para que os participantes pudessem se lembrar e entender as regras dos jogos “Eles se sentiram acolhidos, mas sem laboratório, sem o lado terapêutico que geralmente os acompanha”, relata Simone. Ela tem a experiência de inclusão em todas as temporadas, mas nunca de maneira tão específica como dessa vez. “Foram dias de detox”, afirma. Guilherme, que é médico e pai, comenta que o filho “fez amizades, participou de brincadeiras competitivas e cooperativas em times e está feliz, com planos para o reencontro dos novos amigos pois, desta vez, não se sentiu o patinho feio entre os cisnes”.

Isolamento e acomodação são comuns

A psicomotricista e doutora em Educação e Saúde na Infância, Fátima Gonçalves, explica que o transtorno do Déficit de Atenção/Hiperatividade pode se manifestar em questões da atenção e da concentração, com hiperatividade ou inibição motora. Relata que, “nos últimos anos, a detecção e diagnóstico precoces têm por um lado facilitado a ascensão dessas crianças à intervenção em tempo oportuno, mas por outro, tem favorecido um enquadramento patológico, que acaba por criar, para elas, um ambiente pouco inclusivo e acolhedor”.

Ela conta que, além das questões do desempenho escolar, é bastante frequente a queixa dos pais em relação à socialização. “Muitas vezes, por fazerem uma leitura diferente das situações cotidianas, as crianças acabam por se perceber diferentes e, ainda, pouco capacitadas a realizar brincadeiras e atividades comuns na infância, resultando em isolamento”. Por isso, ressalta Fátima, “um acampamento voltado a esse público permitiu colocar as crianças em experiências de jogo, brincadeiras e propostas compartilhadas, para descobrirem sua potência e capacidade de se integrar em qualquer situação”.

Um sonho coletivo

O sítio Recanto Alegre era usado pela família de Simone Pereira como local de lazer aos finais de semana. Paulistana, ela fez o magistério na cidade de Amparo e voltou a São Paulo para cursar Pedagogia e, em um dos estágios de formação, atuou na primeira escola bilingue da capital paulista. “Fui criada junto à natureza e quando comecei a dar aula, senti necessidade de conviver com crianças fora do ambiente escolar, trabalhando o lado lúdico. Elas tinham um nível econômico alto, mas não conseguiam admirar o simples da vida”, observou. Por isso, em 1991, sugeriu ao pai transformar o sítio em um acampamento onde as crianças pudessem ter esse convívio e experenciar o que não têm no seu ambiente cotidiano.

A experiência funcionou e ela assumiu seu lado empreendedor, investindo na infraestrutura e em pessoas capacitadas para atuar de maneira lúdica e individualizada, passando a atender grupos escolares, sempre com inclusão de crianças com autismo, TDA/H, síndrome de Down, dependentes digitais e outros. “Afinal, quem é normal?”, questiona. Simone foi diagnosticada tardiamente com Déficit de Atenção e descobriu que “não é possível viver somente com os limites, é preciso ver o lado positivo de cada indivíduo, oferecer informações e abrir espaço para que ele possa, por si mesmo, criar novas habilidades, fazer tentativas, aprender a se organizar, ter independência e fazer tudo isso de maneira lúdica”.

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