NOVO MUNDO

Geração coronial: os bebês nascidas durante o isolamento social provocado pela covid-19

Essas crianças requerem maior atenção para que seu desenvolvimento não fique prejudicado

Aline Guevara
29/03/2022 às 16:07.
Atualizado em 29/03/2022 às 16:07
Estudos realizados nos Estados Unidos mostraram que bebês nascidos no primeiro ano da pandemia apresentam pequenos atrasos no desenvolvimento de habilidades motoras e sociais (Divulgação)

Estudos realizados nos Estados Unidos mostraram que bebês nascidos no primeiro ano da pandemia apresentam pequenos atrasos no desenvolvimento de habilidades motoras e sociais (Divulgação)

Eles já têm até um nome próprio para sua geração: são os “coronials”. Os bebês nascidos durante o período da pandemia estão recebendo atenção profissional e estudos ao redor do mundo. Afinal, o início de suas vidas e do seu desenvolvimento ocorre em um período totalmente atípico. Um desses estudos realizado na Universidade de Columbia, em Nova York, nos Estados Unidos, mostrou que os bebês que nasceram no primeiro ano da pandemia apresentam pequenos atrasos no desenvolvimento de habilidades motoras e sociais, quando comparados com as crianças que vieram ao mundo antes da covid-19.

Por aqui, a psicóloga infantil Queila Rezende Pierre tem se dedicado a atender famílias de crianças pequenas nos últimos dois anos. Segundo ela, o ambiente tem uma importância e influência muito grande no desenvolvimento dos filhos. E o ambiente mudou completamente com a pandemia.

Imagine uma situação: uma criança pequena que está bastante reclusa, o pai passa o dia no home office e a mãe nas atividades domésticas. Sem estímulos suficientes, esse bebê pode ter um atraso no início da fala e problemas para desenvolver a fixação do olhar, porque ainda não identifica direito muitos rostos e isso afeta seu desenvolvimento social. “A rotação que o pescoço do bebê faz ao acompanhar a fala e sons de um adulto interagindo com ele é totalmente estimulante com áreas cerebrais que vão desenvolver habilidades motoras. Tudo está meio interligado”, esclarece a psicóloga.

Atraso mais comum

Uma das queixas mais comuns dos pais, segundo Queila, é a demora no início da fala. No entanto, uma vez que os pais têm demorado mais para levar os filhos para a escolinha, com receio da covid-19 e outras doenças, este é um efeito colateral relativamente comum, pois a vida social com outras crianças da mesma idade, proporcionada pelo espaço, é um estímulo importantíssimo para os bebês. “Na interação com os pais, eles sempre são tratados de forma que os incômodos sejam evitados. Já ao lado de seus pares, são colocados para fora da zona de conforto e é quando desenvolvem maiores aprendizados”, afirma.

Existem outras preocupações frequentes dos pais, como o incômodo da criança ao ser exposta a sons altos e diferentes ou ao ter contato com um grande número de pessoas. Algumas se incomodam principalmente com outras crianças, que não vão respeitar tanto o seu espaço como os adultos costumam fazer.

Desenvolvimento mais lento não é patologia

Diante dos sinais, os pais podem ficar bastante preocupados. Mas a hora é de calma e atenção, não de nervosismo. A psicóloga infantil alerta que é preciso tomar muito cuidado para não ‘patologizar’ qualquer comportamento atípico, sem levar em consideração o contexto atual. “Antes, bebês que se incomodavam muito com ambientes barulhentos ou com a aproximação de outras crianças poderiam estar demonstrando sinais de uma patologia. Mas hoje temos uma outra situação na vida delas para considerar”, reforça a psicóloga.

“Atualmente, um neuropediatra avalia uma criança com algum atraso e já faz um diagnóstico de hipótese de autismo e eu acredito que é muito precoce pensarmos nisso. Quando essa criança nasceu? Ah é, na pandemia”, discute. Para Queila, todos os profissionais que lidam com as crianças, sejam eles médicos, educadores ou terapeutas devem, assim como os pais e responsáveis, ter um olhar atento e sensível com essa nova geração. Isso ainda deve levar um tempo considerável, afinal, somente depois de alguns anos será possível entender com maior clareza a extensão e os efeitos da pandemia.

Como pontua Dani Dumitriu, um dos autores da pesquisa da Universidade de Columbia, essas descobertas sobre os atrasos não significam necessariamente que esta geração será prejudicada mais tarde na vida.

A importância dos estímulos

Como pontuam os dois profissionais, não há motivo para pânico. Os estímulos certos podem ajudar a suprir aqueles que faltaram e a acelerar possíveis atrasos no desenvolvimento. “Bebês que só engatinham e andam no chão do apartamento com uma mesma textura de piso, têm um desenvolvimento sensorial completamente diferente da criança que tem acesso a um quintal, que vai na grama, sente as pedrinhas no chão, tem contato com animais, sente a brisa no rosto. Tudo isso tem um impacto cognitivo significativo”, reforça Queila.

No entanto, a psicóloga também lembra que cada criança tem um desenvolvimento único e um tempo de amadurecimento individual. Ela vê nas próprias escolas a solução para este estímulo mais direcionado para os coronials, desde que adotem atividades assertivas e de acordo com as novas necessidades deles.

ACORDO COLETIVO PELAS CRIANÇAS

A campineira Andréa Navarro, de 40 anos, estava no início da gravidez de Leonardo, hoje com um ano e meio, quando a pandemia começou. Ela, o marido e o filho Mateus, hoje com seis anos, fize-ram isolamento total. Foi o bom relacionamento com os vizinhos, que também faziam isolamento, que permitiu que as crianças brincassem entre si. “Fizemos um acordo coletivo para mantermos o isolamento e deixávamos as crianças terem contato umas com as outras. Isso durou quase até esse ano”. Hoje, Leonardo tem um pouco de receio de se aproximar de pessoas que não são do seu meio comum. “Ele coloca o rosto no meu pescoço para se esconder. Também tem um atraso de fala, mas estou desde de novembro buscando uma fonoaudióloga e a procura está tão grande que não encontro profissional.” Andréa compartilha a apreensão do atual momento: “vem um medo profundo com a volta à escola das crianças, sem saber se vão usar máscara, se tem crianças doentes. É um misto de receio, um pouco de culpa, mas também alívio por poder olhar pra mim também. E o Mateus está muito feliz com a volta da escola. Já o Léo está vivendo várias novas descobertas, entendendo que existe um mundo para além da mamãe”, conclui.

ISOLAMENTO COM ESTÍMULOS

Davi nasceu num momento mais avançado da pandemia, em agosto de 2021, mas desde a gravidez, sua mãe, Bruna Botari, de 29 anos, vivenciava o isolamento. “Eu não pude aproveitar, como todo mundo, desfilando com o barrigão, não fiz festinhas. Quase não saía”, conta. A preocupação não diminuiu quando Davi nasceu. A avó usava máscara e luvas para ajudar a cuidar dele. “Ainda ficamos com receio do vírus e de outras doenças”, explica a mãe, que decidiu postergar a ida do bebê para a escola. Para compensar, o pequeno recebe estímulos em forma de passeios ao ar livre e contato com a natureza, além de ter a sua curiosidade incentivada em casa. “Ele pode mexer e pegar tudo que tiver vontade”, conta Bruna. A pediatra, que mantém contato frequente pelo WhatsApp, orienta a família e os cuidados com o pequeno. No núcleo familiar de Davi, ele também tem bastante contato com as irmãs adolescentes. Com outras pessoas, por enquanto, só à distância.

DOIS DESENVOLVIMENTOS DIFERENTES

A família de Paula Saad, de 36 anos, ficou isolada nos primeiros meses da pandemia. Grávida de Júlia, que viria a nascer em outubro de 2020, e com a pequena Alice, de um ano e três meses na época, ela tinha muito receio de se contaminar e também as filhas. Mais tarde, quando a caçula tinha um mês, a mãe passou a levar as filhas em passeios no condomínio e no parquinho. “Alice teve atraso na fala, que pode ter sido impulsionado pela pandemia”, explica Paula com informações do neuropediatra, mas também pode ter relação com a sua própria personalidade e tempo diferente de desenvolvimento. Já a coronial da família apresentou um pouco de medo na primeira vez que se viu próxima de muitas pessoas. “Fomos ao shopping e ela começou a chorar. Diferente da irmã, a Júlia não frequentava locais assim. Era muito estímulo de uma vez para ela”. Adequando a necessidade de cada uma, Alice está na escolinha e tem acompanhamento com fonoaudióloga. Vem se desenvolvendo bem e já está falando, enquanto Júlia ainda vai esperar alguns meses para entrar na escola.

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