TRADIÇÕES

A Páscoa de cada mesa

Diversidade por trás dos pratos na data festiva remontam tradições e ancestralidade da população de Campinas e região

Aline Guevara
11/04/2022 às 14:12.
Atualizado em 11/04/2022 às 14:12
Os italianos usam a carne de cordeiro na lasanha porque o animal é um dos símbolos do sacrifício de Cristo,  relembrado na Páscoa (Ricardo Lima)

Os italianos usam a carne de cordeiro na lasanha porque o animal é um dos símbolos do sacrifício de Cristo, relembrado na Páscoa (Ricardo Lima)

Páscoa é uma data repleta de significados. Em primeiro lugar, na cultura ocidental cristã, representa alguns dos últimos atos de Jesus Cristo na terra: sua crucificação, morte e a ressurreição. Até hoje, o simbolismo religioso é levado à mesa em forma de comida, seja para o almoço no domingo pascoal ou na troca de ovos de chocolate. 

Mas estas mesas, que trazem reuniões familiares e de pessoas queridas, são muito diversas dentro das casas na região de Campinas. O menu, claro, passa por gostos pessoais, mas também por tradições familiares que remontam histórias que começaram a muitos quilômetros de distância em outros estados e países, e que hoje se misturam na formação da população campineira. Portugueses, italianos, africanos de diversos países, japoneses e até a recente migração de haitianos são só algumas facetas da atual gastronomia local. Esta que aflora ainda mais forte na Páscoa.

Margareth Brandini Park, pesquisadora de memória gastronômica e autora do livro “Comidas de nossa gente” (2021, Editora Adonis), explica: “A nossa própria identidade está relacionada com as nossas memórias gastronômicas. A comida é uma marca de pertencimento e falar dela é também falar do meu grupo social”. A memória afetiva é ancorada na junção dos sentidos despertos pela comida - a visão, o aroma, o paladar - e na emoção. “Um aroma de uma comida especial pode levar você imediatamente para a casa da sua avó quando você era criança”, lembra a pesquisadora. 

Celebração de culturas e crenças

É o que acontece com o médico campineiro Gilson Barreto, neto da portuguesa Nazaré Correa Barreto, quando come a tradicional bacalhoada da família. O nobre peixe pode ter sido extrapolado para muito além das práticas gastronômicas vindas da “Terrinha”, mas tem raízes profundas nessa cozinha e na relação com a Páscoa celebrada pelos descendentes portugueses. “A bacalhoada da Páscoa é o tempo de reunir a família, pessoas que moram longe e não se veem com frequência. É uma das poucas datas do ano que proporciona isso”, compartilha o médico. Margareth reforça essa ideia, pois “o comer junto é sagrado”. 

Donos do restaurante Flor do Dendê, em Hortolândia, Rodrigo e Suzana Alves celebram suas crenças, vindas do sincretismo religioso de influência católica e de religiões de matrizes africanas a partir da gastronomia da Bahia. A data da Páscoa, celebrada com a tradicional festa baiana e comidas típicas, como a moqueca, vatapá e acarajé fazem a alegria dos frequentadores da casa. “Outras famílias com descendência baiana vêm até nós, experimentam a nossa comida e ficam felizes de comer algo que muitas vezes só provam em épocas como a Páscoa, quando as avós e mães cozinham esses pratos tradicionais para matar a saudade da Bahia”, explica Suzana. 

Dentro de seus simbolismos, a Páscoa ainda representa para o hemisfério norte o final do inverno e início da primavera, com o renascimento, florescimento e a fartura. Os credos se misturam. Na Europa pagã, pré-cristianismo, o período era relacionado à divindade da primavera, Ostara, deusa da fertilidade, amor e do renascimento da mitologia anglo-saxã, da mitologia nórdica e mitologia germânica. “Nas representações, a deusa segura um ovo na mão e tem um coelho aos seus pés, descalços na terra. Claro, depois temos a cristianização desses elementos, mas o que eu gosto de trazer de toda essa simbologia é a vida com pé na terra, fora da casa”, explica Margareth. A comemoração da Páscoa europeia também traz a comida fora de casa, nos piqueniques, celebrando o alimento junto à natureza. Depois de dois anos de pandemia, isolamento e restrições, Margareth revela que, neste momento, é valorizada ainda mais essa interpretação da data.

“Os rituais da comida e de seu universo perpassam por muitas culturas bem diferentes uma da outra”, relembra a pesquisadora. Mas ela conta que a Páscoa, em qualquer uma delas, traz essa simbologia de juntar pessoas. “É boa comida e boa companhia. As comidas podem ser diferentes, as crenças também, mas o conceito é o mesmo. É o mundo que se ilumina, que traz calor e convite para estar na natureza e repartir coisas e comidas com pessoas queridas”, completa.

Os ingredientes da autêntica bacalhoada consumida pelos portugueses no almoço de Páscoa, em receita seguida pelo médico Gilson Barreto (Kamá Ribeiro)

Os ingredientes da autêntica bacalhoada consumida pelos portugueses no almoço de Páscoa, em receita seguida pelo médico Gilson Barreto (Kamá Ribeiro)

Páscoa Portuguesa

“A comida portuguesa, por causa da minha avó, esteve sempre muito presente na minha vida. Nossa comida não é tão rebuscada como, por exemplo, a francesa - vem de uma comida mais simples. Coisas como o pastel de Belém eram simplesmente os docinhos da minha avó”, explica o médico Gilson Barreto. Para a Páscoa, o prato que também vem como tradição da matriarca da família, Nazaré Correia Barreto, não podia ser outro: a bacalhoada. Apesar dos peixes do dia a dia na cozinha de Dona Nazaré serem os mais baratos e de fácil acesso, como a sardinha, o bacalhau era guardado para ocasiões especiais. “Minha avó veio para cá no período pós-guerra, saindo de uma situação de pobreza. E a Páscoa também representa esse espírito de renovação, mesmo que de forma inconsciente na cabeça das pessoas. É também a única reunião da família, fora o Natal, que trocamos presentes, nos doamos aos outros”. Hoje, mesmo depois de Nazaré já ter falecido, Gilson continua a tradição da avó, cozinhando com o mesmo carinho pela gastronomia de seus antepassados.

Páscoa Italiana

“O que usamos muito na Páscoa na Itália é a carne de cordeiro, representando o sacrifício de Jesus Cristo”, conta o campineiro Giulio Gobbato, filho de italiano e cozinheiro que está à frente do restaurante Macarronada Italiana, casa fundada por seu pai e seu tio. Na hora de escolher os pratos festivos para a data, ele faz a carne ou assada ou usando-a para substituir a opção bovina em suas tradicionais massas com molhos, como é o caso da lasanha com ragu de cordeiro. Dessa forma, o prato tipicamente italiano ganha sua versão especial de Páscoa. “A massa típica e, principalmente, o nosso característico molho à bolonhesa, com a carne picada, vem da região onde meu pai nasceu, a Lombardia. Aqui no Brasil é uma receita inusitada. Conhecemos mais esse molho com a carne moída, típica do sul da Itália”, explica.

Mãe Eleonora ensinou ao filho a tradicional receita da moqueca baiana que a família continua fazendo nos domingos de Páscoa (Janaína Rodrigues)

Mãe Eleonora ensinou ao filho a tradicional receita da moqueca baiana que a família continua fazendo nos domingos de Páscoa (Janaína Rodrigues)

Páscoa Baiana e Afrodescendente

Os pratos de Páscoa na cozinha de Rodrigo e Suzana Alves já começam a sair da panela na Sexta-feira Santa. “O peixe, bacalhau com batatas, vem acompanhado de pirão e vatapá, mas sem usar azeite de dendê”, frisa Suzana, afinal, a data também celebra o dia de Oxalá. No domingo de Páscoa, é a vez da moqueca - tradicionalmente de peixe, mas o casal também faz versões de siri, camarão e até de banana. A família, que adota o sincretismo religioso com influência católica e em religiões de matrizes africanas, une suas crenças à gastronomia, cultivada pela mãe de Rodrigo, a Mãe Eleonora. Filha de mulher baiana e afrodescendente, sempre quis descobrir suas exatas origens no continente africano, mas, infelizmente faleceu, em 2021, antes de continuar nessa busca. Rodrigo ainda pretende seguir os passos e remontar sua origem. Mas isso não o impede de celebrar a gastronomia de seus ancestrais. “Nossa cultura gastronômica tem uma grande potência nas mesas brasileiras”, enfatiza.

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