ZEZA AMARAL

Meias sem costuras

Zeza Amaral
igpaulista@rac.com.br
16/05/2015 às 05:00.
Atualizado em 23/04/2022 às 13:33

Colunista Zeza Amaral (Cedoc/RAC)

Não tinha nada além de si e da disposição para apenas ser feliz pela vida, custasse o que custasse. Tivera muitos relacionamentos amorosos, mas agora queria sossego para dormir sem ter que tomar banho, de escovar os dentes e cultivar seus poucos hábitos persecutórios, tais como verificar se portas e janelas estavam trancadas, se não havia nenhum botão do fogão ligado, e, suprassumo neurótico, se o telefone estava devidamente encaixado em seu console. Manias tinha algumas, é certo, e uma delas - talvez responsável pelo fim de seus oito casamentos, era o que ele achava - era o hábito de calçar as meias pelo avesso que, no fundo, não era mania e, sim, uma busca pelo conforto dos pés, pois o avesso da meia evitava o atrito da costura sobre os dedos; ao calçá-las, sempre procurava descobrir o motivo que levava alguns fabricantes de meias em fazer um pé com costura saliente e outro, não, sendo que as piores eram aquelas que traziam costura bem na ponta, ao contrário das meias que vinham com costuras sobre o dorso dos dedos. Chegou a ponto de escrever uma longa carta para um renomado fabricante relatando as suas dúvidas e agruras e solicitando melhoria no produto, meias sem costura e, se possível, sem punhos, visto que tal acabamento estrangulava suas canelas e impedia o fluxo natural do sangue, o que lhe inchava os tornozelos. Como tinha o hábito de reler várias vezes o que escrevia, concluia que a missiva era uma cornucópia de absurdos e a guardava dentro de uma caixa de sapatos; que era para onde iam as cartas que não enviava, cada qual no seu nicho, o qual ele chamava ora de cemitério de palavras, ora de notícias, a depender do assunto. Além do mais, caso o fabricante viesse a atender sua solicitação como arranjaria assunto com a simpática e morena balconista da Meia Elegante? Não, ele não comprava suas meias lá porque a loja era só para atender a beleza das pernas, quadris, pés e seios das mulheres. E lá só entrava, pela hora da imensa tarde, quando a via arrumando as prateleiras e fazendo passar o tempo até que alguma cliente entrasse. Anos atrás, apareceu por lá para comprar meias sem costura e ficou meio constrangido ao ser informado que a loja só vendia artigos femininos. Mas mesmo assim pediu à balconista se ela conhecia alguma meia masculina sem costura e onde poderia encontrá-la. Ela não sabia; mas prometeu que iria se informar devidamente sobre o assunto e que ele passasse por lá de vez em quando para saber das novidades. Numa certa tarde cinzenta, naquela tarde que prometia uma chuva que não veio, a loja estava cheia de senhoras elegantes quando, pela primeira vez naqueles anos todos, ela saiu na porta da loja e o chamou do outro lado da rua. Na calçada, junto ao meio-fio, ela lhe entregou três pares de meias embaladas em fino papel de seda: branca, marrom e preta. Sem costuras, explicou, acrescentando que ela mesmo tinha desmanchado as costuras e depois as cerziu. E ali na calçada da Rua Conceição nasceu um amor à primeira costura... Bom dia.

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